O automóvel e suas cores

Antes da atual mesmice de tons cinzentos, a pintura dos carros apontou
tendências, identificou países e refletiu a personalidade dos donos

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editor

Alguns de nós podem nem se dar mais conta, mas como andam monótonas nossas ruas e estradas em termos de cores de automóveis! A cinzenta e impessoal grade de tons que vai do prata ao preto tomou conta da paisagem brasileira, por motivos já bastante comentados — do interesse de fabricantes e concessionárias, que não querem correr risco de encalhe, ao receio de muitos de comprar um carro que seja mais difícil de revender.

Mas nem sempre foi assim, como não é assim — ao menos com a mesma intensidade — mundo afora, o que faz das cores dos carros um interessante assunto.

No começo do século passado já era possível escolher entre várias cores para um automóvel e mesmo combiná-las no mesmo carro: usar um tom mais escuro nos para-lamas, então destacados da carroceria, era um arranjo bastante comum. Foi a produção em massa de Henry Ford, com o Modelo T, que começou a tirar um pouco dessa variedade das ruas.

Como a tinta preta era a que secava mais rápido — portanto mais adequada ao ritmo acelerado de montagem em série —, em dado momento Ford a elegeu como cor obrigatória para o veículo responsável por motorizar os Estados Unidos. Vem daí a frase que seus concorrentes maldosamente lhe atribuíam: "Você pode ter seu Modelo T de qualquer cor, desde que seja preto".

Passado o período do T, o colorido voltou a predominar nas ruas. Nos anos 50 tornou-se frequente a pintura "saia e blusa", em que a linha de cintura — à altura das maçanetas — dividia o carro em dois tons, em geral com o mais escuro embaixo. Alguns modelos valorizavam tal repartição, coincidindo-a com frisos e adornos em formas criativas. No Chevrolet Corvette, um tom diferente podia ser aplicado a uma seção de forma côncava atrás das rodas dianteiras.

Foi também nesse período que ganhou força a pintura do teto em tom mais claro que o restante, até mesmo branco — comum nos carros nacionais da DKW-Vemag. O motivo é fácil de entender: como uma cor clara reflete mais os raios solares e absorve menos calor, aplicá-la à cabine contribuía para reduzir seu aquecimento quando exposta ao sol.

Fatores racionais à parte, existem cores muito associadas a marcas ou nacionalidades, como o vermelho para a Ferrari. Já para os alemães da Audi e da Mercedes-Benz, o prateado remete aos tempos dos "Flechas de Prata", modelos de corrida dos anos 30 produzidos pela marca da estrela e pela Auto Union, associação da qual apenas a Audi remanesceu. Na França, os Bugattis esportivos tinham no azul sua cor habitual, mantida anos depois por Amedée Gordini em seus Renaults preparados.

Nos Estados Unidos, branco e azul vêm muitas vezes associados entre a pintura predominante e as faixas longitudinais. E muitos carros esporte ingleses só pareciam completos se viessem em verde escuro — melhor ainda com revestimento interno em bege, o que este editor considera irresistível.

Essas cores não se consagraram por acaso: nos anos 20 e 30, por ocasião das corridas de Grande Prêmio — a antecessora da Fórmula 1 —, adotaram-se cores como padrão para os países de origem dos carros. Os alemães usavam branco ou prata (às vezes com o metal sem pintura); os franceses, azul; os japoneses, branco com um círculo vermelho no capô em alusão a sua bandeira; os italianos, vermelho; os norte-americanos, branco associado a faixas em azul ou o contrário; e os ingleses, o clássico British Racing Green ou verde britânico de competição.

Gente importante
Voltando aos automóveis em nossas ruas, da fase inicial da indústria local até os anos 70 predominavam por aqui tons suaves como azul e verde claros, bege e branco. Carro preto era raridade, quase exclusivo de veículos oficiais. Pode ser que essa imagem de "cor de gente importante" explique, até hoje, por que se compram tantos carros pretos num país tão quente quanto o nosso. Certamente não é por qualquer aspecto prático, já que a pintura nesse tom queima-se com facilidade, destaca qualquer risco e é das mais difíceis de se conservar limpa.

Então vieram as cores metálicas e as preferências começaram a mudar. Com brilho diferenciado e maior proteção contra as intempéries, a pintura especial ganhou amplo espaço no mercado, mesmo custando mais. Foi com ela que cores não muito populares antes, como cinza, vinho, dourado e tons escuros de azul e verde, começaram a aparecer mais nas ruas. Nos anos 80 e no início dos 90, acredito, tivemos nossa maior variedade cromática entre os carros novos.

Variedade que chegou ao exagero em alguns casos. Por volta de 1995 os fabricantes passaram a lançar cores inusitadas — tons vivos de verde, roxo, marrom-ferrugem — para chamar atenção para lançamentos como Corsa, Fiesta e Palio, seguidos mais tarde pelo amarelo do Astra (1998). Os poucos que aderiram pagaram o preço pela dificuldade para revender o carro, pois o mercado logo se cansou da brincadeira e passou a rejeitar os tons "de lançamento". Parece que não se havia aprendido nada com o Voyage Los Angeles de 1984, série especial pintada em um azul que muitos associavam a tampas de panela.

Depois do predomínio do vinho (repare nas ruas quantos carros dos anos 90 têm essa cor), o prata e o cinza rumaram à liderança, em geral apoiados em uma associação com tecnologia
metais costumam ter tons cinzentos, do aço ao titânio, passando pelo alumínio.

A adesão foi tão grande que até os fabricantes mostraram receio de contrariar essa tendência. A bela cor dourada do Focus, que a Ford argentina chamava de bege, era vendida aqui como prata Atenas para não assustar o comprador com algo que — embora não fosse prata para seus olhos — fugisse muito ao que ele buscava. O mesmo ocorreu para um tom azulado que a Toyota preferiu chamar de prata Aquamarine.

Outro fenômeno dos últimos 10 a 15 anos foi a retração do branco, ao menos em São Paulo e outros mercados em que essa se tornou a cor obrigatória para táxis. Embora tenham mantido a preferência de muitos em regiões como o Sul e o Nordeste, os carros particulares brancos quase desapareceram das ruas paulistanas e, mais tarde, também do interior do estado.

Depois de mais de uma década da triste hegemonia da gama prata-cinza-preto, o cenário volta a ganhar variedade. O branco recuperou-se a olhos vistos e já representa importante parcela das vendas de importados de luxo. Cores alegres como amarelo e laranja continuam a ser usadas nos lançamentos, sobretudo em versões esportivas e "aventureiras", mas já assumem certo espaço nas vendas.

E, como nada se cria, tendências de outros tempos estão de volta. As faixas pretas que acabam de aparecer no Ka Sport, e que a Ford procura associar às do Mustang, parecem as do Corcel GT dos anos 70 — na época, como agora, o carro esporte norte-americano foi a inspiração. No Mini da BMW e no Citroën DS3, o teto branco ou de outra cor em contraste à da carroceria remete ao Mini original da BMC, ao Citroën DS e a outros modelos de meio século atrás.

Só falta mesmo ressurgir a pintura "saia e blusa" — se vale uma sugestão, ficaria ótima na Kombi, já que a perua é praticamente a mesma desde quando essa combinação de tons estava em alta.

Pode ser que essa imagem de "cor de gente importante" explique, até hoje, por que se compram tantos carros pretos no Brasil

Colunas - Página principal - Envie por e-mail

Data de publicação: 16/7/11

© Copyright - Best Cars Web Site - Todos os direitos reservados - Política de privacidade