O país do faz-de-conta

Nos carros de corrida ou de rua, nos combustíveis ou na legislação,
querem nos fazer acreditar naquilo que não é o que parece

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editor

Dias atrás, navegando pelo Best Cars para verificar alguns conteúdos, vi um anúncio de publicidade que me chamou a atenção. A imagem mostrava um Ford Focus, um Honda Civic e um Chevrolet Astra com aparência de competição. Ao se passar o ponteiro do mouse pelo anúncio, os carros de rua correspondentes "caíam", deixando no alto apenas as carrocerias de corrida, enquanto surgia a frase: "Carros de verdade. Combustível e lubrificante também."

Tratava-se de um anúncio da Copa Petrobrás de Marcas. Só que os carros desse campeonato pouco têm em comum com os citados modelos de produção: todos, qualquer que seja a marca da carroceria, recebem motor argentino preparado pela Berta e caixa de câmbio sequencial Xtrac inglesa. Portanto, eventual vitória de um dos modelos nada significa em termos de superioridade técnica de seu equivalente de rua. Esses são os "carros de verdade"?

O leitor pode argumentar, com certa razão, que não é um fato novo: a Stock Car há anos tem colocado "bolhas" que lembram as carrocerias de modelos de rua (hoje, apenas Chevrolet Vectra e Peugeot 408, mas já houve outros como Mitsubishi Lancer e Volkswagen Bora) sobre chassis tubulares com motores V8, ou seja, estruturas e mecânicas sem qualquer relação com as usadas pelos carros de série. No entanto, no caso da Copa Petrobrás, chama atenção a impropriedade de falar em "marcas" para carros que não têm a mecânica das fábricas que representam.

Levando o assunto um pouco além, o que se nota é que vivemos num país do faz-de-conta, e não só quando se trata de competições de automóveis.

A mesma Petrobrás nos rende um bom exemplo, já que distribui e vende um combustível chamado de gasolina, mas que está longe de ser apenas isso: de 18% a 25% do líquido, conforme o padrão vigente hoje, é álcool. Ou seja, se fazemos de conta que usamos gasolina, na verdade pagamos um preço dos mais altos do mundo por um coquetel.

É por isso que a "gasolina" subiu tanto de preço nos últimos meses, empurrada pela maxivalorização do álcool. É também por esse motivo que qualquer carro importado, para funcionar bem com a "gasolina" brasileira, precisa ter sua central de injeção e ignição recalibrada, o que implica custos e desestimula os fabricantes a oferecerem por aqui modelos com expectativa de pequeno volume de vendas — que não raro são vendidos em mercados muito menores, como o argentino. É, ainda, por isso que o proprietário de um carro adquirido aqui pode ter alguns problemas ao viajar para um país vizinho e abastecer com gasolina "de verdade", pura (a menos que se trate de um flexível da Renault ou de um Fiat Siena Tetrafuel).

Exportar álcool?
Por falar em álcool, outro caso de faz-de-conta. Vendemos ao mundo a ideia (verdadeira) de que fomos pioneiros na produção de carros a álcool, ainda na década de 1970, mas também nos é vendida a ideia de que podemos ser grandes fornecedores desse combustível para outros países. Será? Está à vista de todos como o setor produtivo tem sido incapaz de atender até mesmo à demanda interna por álcool para veículos. Imagine como seria se estivessem com gigantescos contratos de exportação!

O que nos leva a mais um faz-de-conta. Com a consciência ambiental em alta, muito se fala nos efeitos benéficos do uso de álcool pelos veículos na concentração de gás carbônico, que se acredita contribuir para o aquecimento do planeta. Governo e fabricantes gostam de contar — se no exterior, melhor ainda — quantos carros flexíveis já rodam por aqui e como prezamos essa questão ambiental. Pois bem: quantos continuaram a usar álcool durante a recente crise que levou o preço desse combustível à estratosfera? Faz-se de conta que há um objetivo ecológico, mas tudo não passa do interesse em pequena vantagem financeira.

Combustíveis à parte, há bastante faz-de-conta também no mercado de automóveis. Que outro nome se pode dar ao fato de carros populares nos Estados Unidos — como Civic e Corolla — serem vendidos aqui com a imagem de modelos de luxo? E não é só: à medida que os automóveis crescem em tamanho e ganham tecnologia no exterior, o Brasil faz "promoções" em seus modelos para que preencham um segmento superior. Caso típico foi o do Chevrolet Vectra, cuja segunda geração deu lugar, por aqui, a um similar do Astra europeu, enquanto o verdadeiro Vectra da Opel alemã crescia e ganhava sofisticação até se transformar no Insignia.

Se ao menos os carros fossem elevados em posição no mercado, mas evoluíssem por inteiro, ainda seria razoável. Mas não: aqui na terra do faz-de-conta, os desenhos de carroceria podem até acompanhar as novas gerações lançadas lá fora, mas por dentro — na mecânica — tudo fica praticamente como estava.

E o que são as versões "aventureiras", senão um grande faz-de-conta? Algumas ainda trazem vantagem prática de uso, como maior vão livre do solo ou pneus de perfil alto para lidar melhor com lombadas, valetas e buracos do "fora-de-estrada urbano", mas não todas. Em geral, paga-se mais por um carro com uma série de apetrechos inúteis ou até inconvenientes — como o estepe externo improvisado de Fiat Idea Adventure e VW CrossFox, que atrapalha o acesso ao compartimento de bagagem. Não é à toa que mais e mais fabricantes se lançam a esse segmento: deve ser muito lucrativo usar para-choques sem pintura e cobrar um preço mais alto que o da versão que traz as peças pintadas.

O faz-de-conta está também na legislação de trânsito e em sua aplicação. Como já se disse, de leis temos mais que o suficiente — precisamos é fazê-las valer. E o que acontece na prática? Colocam-se radares e câmeras para multar por excesso de velocidade e passagem em sinal vermelho, autuam-se alguns veículos em estacionamento irregular, e só. Todas as demais infrações previstas no Código de Trânsito Brasileiro ficam esquecidas, fazendo de conta que não prejudicam o tráfego ou acarretam riscos.

Fiscalização seria o bastante para, por exemplo, acabar com a praga moderna dos faróis de xenônio mal adaptados, que tanto ofuscam motoristas ruas e estradas afora. Seu uso já havia sido regulamentado com a exigência de constar a adaptação da documentação do carro, mas o problema não diminuiu — claro que não, pois só se fez de conta que havia fiscalização. Agora, o xenônio não original de fábrica foi proibido de vez. E é evidente que não vai resolver de novo, pois carros com faróis mal adaptados vão continuar a circular, mas se faz de conta que a nova canetada solucionou a questão.

Se o setor tem sido incapaz de atender até mesmo à demanda interna por álcool, imagine com gigantescos contratos de exportação

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Data de publicação: 2/7/11

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