O caminho das pedras

Antes de exportar para o mercado brasileiro  um fabricante tem
de pensar em combustível, piso, legislação e muito mais

por Fabrício Samahá

Vamos fazer de conta que o leitor ou a leitora, trabalhando na Engenharia de um fabricante de carros no exterior, recebeu a incumbência de definir o que deve ser modificado em seus modelos para a exportação ao Brasil. Não só aquilo que a legislação requer, mas também adequações às condições e às formas de uso locais, às preferências do consumidor e, como ninguém é de ferro, às peculiaridades tributárias. Por onde começar?

Não é um caminho fácil, saiba de antemão. Pode-se dar início pelo combustível. Embora alguns países (como parte dos Estados Unidos) já usem algum tipo de álcool em proporção de até 10% na gasolina — o chamado E10 —, é caso único no globo o teor aproximado de 25%, obrigatório aqui, que exige uma mistura ar-combustível cerca de 10% mais rica (mais combustível, menos ar). Como isso pode exceder a tolerância da central eletrônica para um funcionamento perfeito, faz-se necessário recalibrar o motor, definindo novos mapas de injeção e ignição para ingerir o "coquetel". Se o veículo original não contava com proteção anticorrosão para o E10, acrescente esse preparo.

Talvez você saiba que, a não ser em carros realmente caros, no Brasil as chances de fazer sucesso são pequenas sem um motor flexível em combustível, que rode com álcool e/ou gasolina. Sua empresa já tem um desses motores, que existem nos EUA há quase 20 anos? Não faz diferença. No Brasil os "flex" são diferentes, pois o álcool é vendido praticamente puro e não com 15% de gasolina, como no E85 que vocês usam aí fora. Com isso, será preciso recalibrar o motor — outra vez enriquecendo a mistura no mapa referente a teor máximo de álcool — e adaptar um sistema de partida a frio com gasolina. Isso mesmo: ao contrário do resto do mundo, aqui precisamos de uma injeção do derivado de petróleo para o motor ligar no tempo frio, que nem é tão frio quanto o de vocês. Vai dar trabalho? É possível. Tem fabricante que usa até uma caixa de aço atrás do para-lama para alojar o "tanquinho" por falta de espaço no compartimento do motor.

Depois vem a parte de rodagem. Você deve ter passado por alguns buracos e lombadas em seu país, mas saiba que aqui eles são muito comuns. Dizem que as lombadas existem para educar o motorista, mas depois do solavanco nós aceleramos e não ligamos para o limite de velocidade... Deve ser alguma campanha do governo para comprarmos mais amortecedores, pastilhas de freio e, claro, combustível. Ah, sim, o código de trânsito local estabelece normas e dimensões para que as lombadas não estraguem os carros nem perturbem a fluidez do tráfego. O problema é que da teoria até a prática, aqui no Brasil, há uma grande distância. Você não vai demorar a entender isso.

Então, vai a receita. Levante a suspensão (até 30 mm se necessário, como fez a Peugeot no 307), o que requer nova calibração de molas e amortecedores. Evite pneus de perfil muito baixo, mais suscetíveis a danos em buracos e que deixam o rodar mais duro, e adote batente hidráulico nos amortecedores, para evitar "pancadas" de fim de curso ao passar rápido pelas lombadas. A Fiat chegou a enviar peças nacionais com esse dispositivo para montagem nos Tipos italianos que viriam para cá: talvez seja uma boa idéia. Se for o caso, abandone o subchassi de alumínio para usar um de aço, como fez a General Motors no Astra nacional. Além da resistência, você reduz os custos e o consumidor nem vai perceber.

Reconheço que nem todo fabricante toma essas medidas que demandam cálculos e testes, afetam a estabilidade (já estamos acostumados a isso, acredite) e deixam alguns carros com jeito de "aventureiro", com enormes vãos entre pneus e para-lamas, como o Renault Mégane. Mas, sem mexer em nada disso, seu carro pode não resistir a nossas condições de piso. Fosse o caso de produzir o modelo no Brasil, talvez valesse a pena ir mais longe. A Fiat concluiu, após testar o Uno e o Tempra italianos, que suas suspensões não podiam ser adequadas ao "nosso chão". O primeiro ganhou o conjunto traseiro do 147, e o outro, ambos os conjuntos vindos de outros modelos do grupo.

Tem mais. Existe por aqui uma legião de motoristas que se incomoda em ter de reduzir marchas em ultrapassagens, subidas e lombadas. Com isso, muitos fabricantes encurtam as relações de marcha nos carros destinados ao Brasil. Cuidado, porém: não raro eles exageram na dose e deixam o motor "gritando" em velocidades de viagem (leia editorial a respeito). Outras boas providências são melhorar a vedação contra poeira e selecionar sistemas de ar-condicionado e arrefecimento mais eficientes, voltados a climas quentes. Há pelo mundo outros mercados com exigências semelhantes, o que facilita o processo.

Fabrício Samahá, editor

Legislação aqui é fogo
Então vem a parte de legislação. Até certo ponto você deu sorte: a brasileira até pode ser considerada tolerante, como nos sistemas de iluminação e sinalização. Ao contrário da Europa, não exigimos repetidores laterais das luzes de direção, luz traseira de neblina ou ajuste elétrico do facho dos faróis. Diferente dos EUA, não impedimos o uso de retrovisor esquerdo convexo nem obrigamos que as luzes de direção traseiras sejam vermelhas. Veja só, até admitimos que carros mexicanos — Ford Fusion, Nissan Sentra — venham para cá com tais luzes vermelhas, de padrão norte-americano, em vez da cor âmbar que é obrigatória para os feitos aqui há mais de 20 anos. Pode chamar de bagunça legislativa, mas que isso facilita para vocês, facilita.

Por outro lado, você terá um trabalhão por causa de um item anacrônico, usado só no Brasil e em mais meia-dúzia de países, nenhum deles desenvolvido: o extintor de incêndio. Eu sei que a ocorrência de fogo nos acidentes é muito rara, aqui ou em qualquer lugar do mundo. Mas, por algum motivo, todo carro vendido no País precisa trazer esse pesado cilindro preso com segurança a um local acessível ao motorista. Como isso não é previsto pelos fabricantes aí no Primeiro Mundo, adaptações são feitas e algumas chegam a incomodar as pernas do motorista ou do passageiro a seu lado.

Acabou? Não, falta a questão dos impostos. Não que você — que vai exportar para o Brasil — possa escapar à sede por arrecadação do governo local, que já devora em tributos quase 40% do Produto Interno Bruto (PIB). Mas uma adequação às faixas mais leves do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) ajuda a obter um preço mais convidativo. Assim, para carros de pequena cilindrada é interessante ficar abaixo de 1.000 cm³, enquanto modelos médios devem vir com menos de 2.000 cm³ para não ser penalizados com a mais alta das alíquotas de IPI. Marcas como Kia (Picanto) no primeiro caso e Honda (Accord e CR-V) no segundo têm seguido essas regras, assim como muitos fabricantes em modelos nacionais.

Você acha que aquele seu compacto que pesa mais de 1.000 kg vai se tornar lento demais com motor de 1,0 litro? Concordo, mas estamos acostumados a isso também. Como já se vão quase 20 anos de imposto menor para os "carros mil", que respondem por mais da metade das vendas por aqui, acho que muitos brasileiros nem lembram mais como era acelerar e o motor responder de pronto movendo o carro, sem precisar fazê-lo "gritar" ou trocar de marcha continuamente. Seu cliente pode não ficar satisfeito, mas os da concorrência também não ficam.

Como você viu, não foi fácil montar uma versão para as peculiaridades brasileiras, mas você chegou lá. Só mais um detalhe: não pense que aqui nos trópicos compramos muitos carros brancos e com interior claro, como no Oriente Médio. A cor branca é rejeitada na maior cidade brasileira (São Paulo), por ser obrigatória em táxis, e os brasileiros torcem o nariz para tecidos e couros claros sob alegação de que "sujam muito". Quer saber? Mande metade dos carros em prata e metade em preto, todos com interior no preto mais preto que houver no catálogo. Não vai parar um no estoque!

Você terá um trabalhão por causa de um item anacrônico: o extintor de incêndio. Por algum motivo, todo carro vendido no País precisa trazer esse pesado cilindro em local acessível ao motorista.

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Data de publicação: 15/8/09

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