Cinquenta e três anos depois da DKW-Vemag Universal, parece que
chegamos em definitivo à terceira fase da indústria brasileira de
automóveis, a dos carros emergentes.
Para quem não viveu aquela época, um longo período — algo como os 20
primeiros anos — da produção nacional de automóveis foi baseado em
velhos projetos trazidos do mundo desenvolvido. Modelos em produção
havia anos (ou mesmo já substituídos) lá fora passavam a ser feitos
aqui, muitas vezes usando os ferramentais que deixavam de ter uso no
país de origem. Isso aconteceu mais no começo, em casos como o
Aero-Willys de 1960, mas ainda valia 10 ou 12 anos mais tarde,
quando nossos topos de linha como Dodge Dart, Ford Galaxie/LTD e
Chevrolet Opala já estavam defasados em relação aos similares
norte-americanos (nos dois primeiros) e alemão.
Então chegou a fase dos carros mundiais, aqueles fabricados ao mesmo
tempo em diversos países para obter economia de escala. Desde a
década de 1970, nossa indústria passou a produzir modelos
semelhantes aos contemporâneos dos mercados mais exigentes — não com
as mesmas características técnicas e de acabamento, mas ao menos em
termos de projeto básico. De Chevette e Passat dos anos 70 a Stilo,
Polo e C3 já nesta década (passando por Corsa, Astra, Monza, Vectra
II, Escort, Fiesta, Uno, Punto, Idea, Tempra, Marea, Clio, Fit,
Civic, Corolla e Golf, entre outros), vários carros do chamado
Primeiro Mundo ganharam nacionalidade brasileira pouco depois de
lançados no mercado original — ou até em simultâneo, caso do
Chevette. Poucos mantêm essa tendência até hoje, como os das marcas
japonesas citadas.
Como exceções que confirmam a regra, houve nesse período fabricantes
que desenvolveram a maior parte de seus modelos aqui mesmo, como a
Volkswagen com o Brasília e a linha Gol. Ou que mantiveram velhos
carros em produção por décadas, casos de Chevette, Opala, Uno e,
naturalmente, a Kombi. Também tivemos nacionalizações um tanto
tardias de modelos europeus — o Kadett e o primeiro Vectra levaram
cinco anos, o Omega seis, o Fiat Brava e o Renault Mégane quatro
anos. E até se repetiu por uma vez o hábito um dia comum de trazer
projetos abandonados lá fora: o Fiat Tipo, que se tornou nacional
nada menos que oito anos depois de lançado na Itália e só após ser
substituído pelo Brava.
Mesmo que atrasados e simplificados, tínhamos os mesmos carros à
venda nos mercados de vanguarda. Mas essa tendência começou a mudar.
A Fiat deu o pontapé inicial em 1996 com a família Palio,
desenvolvida para países emergentes. Depois vieram desenhos
nacionais com base em plataformas mundiais, como Celta e Prisma
(derivados do Corsa de 1994) e Fox (baseado no Polo). E nos últimos
anos começou a série de lançamentos de modelos feitos também em
outros mercados menos desenvolvidos, casos de Linea (ainda que
derivado do Punto), Logan, Sandero, Livina, Symbol e agora o Honda
City. São estes os "carros emergentes". |
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As diferenças
À primeira vista, a procedência é tudo o que diferencia um projeto
"emergente" de um trazido do mundo desenvolvido — e que normalmente
é simplificado na viagem. Na prática, as diferenças vão além. O
projeto de um "emergente" costuma levar em conta fatores como má
qualidade de piso e proprietários relapsos com manutenção, pelo que
os fabricantes tendem a aplicar suspensões e motores de tecnologia
menos evoluída, mas aptos a obter longa vida sob condições mais
severas de uso.
Como se destinam a mercados menos exigentes em desempenho, conforto
e segurança, é comum que eles usem motores menos potentes e não
tenham previsão no projeto para tantos equipamentos de moderna
geração. Em alguns casos são também carros mais simples em desenho
externo e interno. Por outro lado, costumam oferecer amplo espaço
interno e para bagagem e, por seu menor custo de fabricação, chegam
ao mercado em faixa de preço muito competitiva diante dos
"desenvolvidos".
Naturalmente, o conceito tem variações e nem toda a regra se aplica
a todos os casos. Como exemplos, o City tem tecnologia similar à do
"desenvolvido" do qual é derivado, o Fit, e está longe de ser
barato; já o Linea não sobressai em espaço interno por se basear em
um carro pequeno (Punto) que ganhou comprimento para competir entre
os médios. Também há diferença clara entre um Logan — projetado do
zero, com o objetivo de baixo custo e amplo espaço, e lançado em
2004 na Romênia — e um Symbol, que representa um novo desenho para o
Clio europeu de 1998, com acomodações internas limitadas por ter
mantido as dimensões estruturais deste modelo.
O comprador de um "emergente", portanto, tem benefícios e
desvantagens. O importante é conhecê-las de antemão para não se
queixar, por exemplo, de que seu novo carro perde em refinamento
para o anterior, um "desenvolvido". Para o mercado, em uma visão
geral, é importante contar com essa variedade de opções aptas a
atender a diferentes perfis de público. Quem valoriza e pode pagar
por modernidade de projeto, técnica refinada e a satisfação de obter
um gosto de Primeiro Mundo pode ficar com os "desenvolvidos"; quem
busca um projeto racional ao menor custo possível, com eventuais
vantagens em robustez e durabilidade, tende a se interessar pelos
"emergentes".
O que o mercado não pode aceitar, porém, é se ver diante de apenas
dois tipos de carros em produção local: o "emergente" e o
desatualizado. Há mais de 20 modelos fabricados no Brasil que
acumulam 10 anos ou mais desde o lançamento (próprio ou do modelo de
que se originou) no mercado mundial: Classic, "novo" Corsa, Astra,
S10, Blazer, Xsara Picasso, Mille, linha Palio (quatro modelos),
Courier, F-250, Pajero TR4, Pajero Sport, 206/207, Scénic, Gol
antigo, Parati, Saveiro, Golf e Kombi — não incluo aqui, assim como
no restante do texto, os que são feitos na Argentina. Alguns desses
carros têm alternativas mais modernas dentro da mesma marca, mas a
maioria não.
Devemos nos conformar com nossa condição de país subdesenvolvido e
ter apenas os "emergentes" e os projetos superados? Acredito que
não. Ao lado dessas opções, que cabe ao mercado decidir por quanto
tempo devem permanecer em produção, precisamos retomar a trajetória
de 10 ou 15 anos atrás e voltar a fabricar modelos modernos do
Primeiro Mundo. Um mercado amplo e aquecido como o que temos
certamente comporta essa mudança de rumo. |
Para o mercado, é importante contar com essa variedade de opções
aptas a atender a diferentes perfis de público. O que ele não pode
aceitar, porém, é ter apenas dois tipos de carros: o "emergente" e o
desatualizado. |