Intérprete de sonhos

O estilo dos automóveis era irrelevante até que aparecesse Harley Earl,
responsável por grandes desenhos da GM em mais de três décadas

Texto: Fabrício Samahá - Fotos: divulgação

As criações de Earl (ao volante) na encarroçadora do pai chamaram atenção de Fischer, ao lado do LaSalle -- seu primeiro trabalho na GM

O modelo 1927 do LaSalle foi o primeiro carro com estilo elaborado na própria fábrica; embaixo, desenhos de Earl para a linha 1934 da marca

Harley ao lado do Buick Y-Job, o primeiro "carro de sonho"; embaixo, seu departamento nos anos 40; no alto, a bordo do Buick Le Sabre 1951

No início do século passado, o comprador de automóveis optava entre dois caminhos. Uma opção, reservada aos endinheirados, era encomendar a carroceria de sua preferência a uma empresa especializada — uma encarroçadora — para ser aplicada sobre o chassi e a mecânica fornecidos pelo fabricante do carro. A outra, mais comum, era conformar-se em já ser um privilegiado (automóveis eram caros e raros) e receber o veículo com o desenho simples e sem inspiração elaborado pela fábrica, em geral uma caixa com para-lamas e estribos, um par de faróis pendurados no radiador e uma capota por cima da cabine. Quem começou a mudar esse quadro, dando a todos os compradores o direito de ter um carro bonito, foi Harley J. Earl.

Earl nasceu em 22 de novembro de 1893 em Hollywood, na Califórnia, oeste dos Estados Unidos. Seu pai, J. W. Earl, nascido em Detroit, havia começado quatro anos antes a construção de carrocerias para carruagens de tração animal, trabalho que evoluiu para veículos motorizados e o levou à fundação da Earl Automobile Works em 1908. Harley chegou a estudar na Universidade de Stanford, mas abandonou o curso para trabalhar com o pai. A empresa dos Earls foi adquirida em 1919 por Don Lee, um concessionário Cadillac, que manteve o jovem como diretor da divisão de carrocerias especiais, um mercado expressivo naquele tempo — sobretudo em uma cidade como Hollywood, com suas estrelas do cinema desejosas de desfilar com carros de linhas únicas. Celebridades como o diretor Cecil B. De Mille e os atores Roscoe "Fatty" Arbunkle e Tom Mix estavam entre seus especiais clientes. Harley usava técnicas inovadoras na atividade como o emprego de argila (clay) para modelar as formas das carrocerias. Seu trabalho chamou atenção de Lawrence P. Fisher, gerente geral da Cadillac, que vinha visitando concessionárias dessa divisão da General Motors por todo o país.

Não demorou para que Fisher — que havia começado sua carreira justamente na encarroçadora Fisher Body, fundada por sua família em Detroit em 1908 — convidasse Earl para desenhar um carro para a GM: o LaSalle, que inauguraria em 1927 uma divisão de apelo mais jovial vinculada à Cadillac. O êxito do LaSalle incentivou o gerente a sugerir ao presidente da corporação, Alfred P. Sloan, que levasse o talentoso desenhista para trabalhar na "capital do automóvel" de forma permanente, o que acontecia ainda naquele ano. Foi então criada a divisão Art and Color (arte e cor) da GM com Earl no cargo de diretor. Pela primeira vez na história do automóvel, um fabricante tinha um departamento voltado a dar estilo e beleza aos carros produzidos pela própria marca, sem recorrer a empresas especializadas. Segundo Sloan, a seção tinha a incumbência de "não apenas atrair o consumidor afluente e interessado em estilo dos anos 20, mas também provocar uma mudança na rotina dos procedimentos da corporação". Em três anos o californiano se tornava Vice-Presidente de Estilo.

A primeira providência de Earl nos novos projetos foi suavizar as formas. Propôs que para-lamas e grade do radiador fossem integrados à carroceria, a grade se tornasse mais arredondada ou assumisse a forma de "V", os faróis fossem estilizados e mais tarde viessem nos para-lamas, os estribos fossem descartados, o estepe desaparecesse da vista externa e os bagageiros aplicados à traseira dessem lugar a porta-malas embutidos no corpo do carro. Lançou tendências como para-brisa levemente inclinado para evitar reflexos ao motorista, calotas cromadas cobrindo as rodas, suportes de placa nos para-choques, volantes de dois e três raios, painel com os instrumentos reunidos à frente do motorista, rádio e tela para o alto-falante incorporados ao painel, velocímetro com ponteiro do tipo agulha, para-sóis internos (antes eram comuns os externos ao para-brisa), limpadores montados abaixo do vidro (acabando com a duplicidade de soluções vigente até então na marca), bocal de abastecimento do radiador sob o capô e cupês com um banco traseiro compacto por dentro da cabine, no lugar do "banco da sogra" externo. Ao colocar o compartimento de passageiros em posição mais baixa e à frente, Harley pôde reduzir a altura total do automóvel e obter um rodar mais confortável, pois os ocupantes do banco traseiro agora sentavam-se à frente do eixo e não praticamente sobre ele.

Earl era um homem de grande porte, com 1,95 metro de altura e mais de 100 kg, considerado intimidador por alguns. Vestia-se de maneira impecável e mantinha sempre um traje no escritório para se trocar caso tivesse um evento logo após o expediente. Em seu departamento, no décimo andar do edifício da GM em Detroit, apenas 10 dos 50 funcionários eram realmente projetistas — ainda não havia formação específica em desenho de automóveis, o que o levou a contratar arquitetos, ilustradores e desenhistas de interiores. Ele também implantou na GM seu sistema de modelagem em argila. Assim apresentava os projetos de modo tridimensional à diretoria, que podia analisar as formas com maior fidelidade. Antes as propostas eram construídas em madeira e metal e cada alteração demandava muito mais tempo e trabalho. Ele costumava dizer que "uma imagem vale por mil palavras; um modelo, por outro lado, vale por mil imagens". A divisão Art and Color era renomeada como departamento de Estilo em 1937, quando se abriam seções independentes para cada divisão da GM com o objetivo de criar identidades próprias que as diferenciassem no mercado. Nessa época Earl trabalhava no que seria conhecido como o primeiro "carro de sonho" — denominação da época para os carros-conceito de hoje — da indústria, o Buick Y-Job de 1938. Continua

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Data de publicação: 4/5/10

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