O interessante chassi do Delta, exposto pela carroceria, e o motor de dois cilindros opostos, o mesmo do Supermíni em um carro mais leve

No entanto, Ciro Gomes não confirmou o empréstimo previsto, o que motivou o afastamento do governo de São Paulo. Sem o apoio de ambos os estados, o BNDES suspendeu sua participação. O andamento do cronograma da fábrica foi atrasado e, em crescentes dificuldades, a Gurgel pediu concordata preventiva em julho de 1993.

A Santos Dumont   A grave situação financeira não minou o espírito de luta nem o otimismo de João Gurgel. Em novembro ele encaminhava ao então presidente Itamar Franco uma apresentação do Projeto Delta. Foi criada uma nova empresa, a Santos Dumont Motores e Componentes, homenagem ao Pai da Aviação. A fábrica, ainda sem local definido, construiria os motores então em uso no Supermíni e teria o apoio da Tecpron Pesquisas e Desenvolvimentos. Esta chegaria a outras aplicações para os motores e componentes básicos, como em motocicletas, tratores de pequeno porte, aeronaves ultraleves, barcos e equipamentos de ar-condicionado e refrigeração em grandes caminhões. A unidade de Rio Claro permaneceria fabricando a linha Gurgel conhecida. Mas já havia novos planos para a Santos Dumont, o Motofour (leia abaixo).

O interesse de Itamar levou a uma Nota Técnica emitida pela Secretaria de Política Industrial do Ministério da Indústria do Comércio e do Turismo (MICT), que classificava o assunto como de real interesse nacional e sugeria a "adoção de medidas de caráter urgente e extraordinário" para a reabilitação da Gurgel e a retomada do projeto, com a concessão de financiamento de US$ 20 milhões à Gurgel num prazo não superior a um mês. Mas a empresa nunca o obteve. Em fevereiro de 1994, o MICT informava que "o Grupo de Trabalho concluiu que o Governo Federal não deve aportar recursos à empresa, quer sob a forma de empréstimo, quer sob a forma de participação societária." Continua

Motofour, o último carro de Gurgel
Um meio-termo entre a motocicleta e o automóvel: é como João Gurgel definia o Motofour, o último projeto desse grande brasileiro. O jornalista Luiz Alberto Pandini pôde fazer uma rápida avaliação do protótipo do Motofour no mesmo dia da entrevista com o engenheiro (leia abaixo), em 1996.

Gurgel imaginava que, com as devidas adaptações, o Motofour poderia ser usado tanto no transporte de pequenas cargas quanto como veículo leve para fora-de-estrada, em praias e estradas de terra. O carro era construído sobre o chassi do Projeto Delta, com a lateral cortada na parte superior. Não tinha capota, parabrisa, portas ou qualquer outra proteção lateral. O motor, um dois-cilindros boxer com 800 cm3, era o mesmo do BR-800 e do Supermíni.

"Dirigi esse carro nas ruas próximas ao escritório de Gurgel", conta Pandini. "O banco do motorista ficava no centro do carro, sobre o túnel central. Não tinha encosto e o cinto de segurança era abdominal, o que me desencorajou a experimentá-lo em ruas e avenidas mais movimentadas. Atrás, havia um pequeno banco que podia ser escamoteado para dar espaço a carga. Freio e acelerador ficavam à direita do túnel central, enquanto a embreagem ficava à esquerda."

"Achei que aquilo não seria confortável, mas me enganei", lembra o jornalista. "Incômodo mesmo era o banco em si, muito duro, e o ato de trocar de marchas — a alavanca de câmbio ficara sobre o túnel central, no meio das pernas do motorista. Gurgel planejava passá-la para o painel, à direita do volante, ou simplesmente deslocá-la para o lado direito."

O Motofour tinha bom desempenho, graças ao peso reduzido, e reagia rápido a qualquer mudança de direção, também esperado devido ao pequeno diâmetro do volante e à modesta distância entre eixos. "Particularmente, eu achava que havia ali um conceito muito interessante, mas que precisava de muitos aperfeiçoamentos e estudos para ter viabilidade comercial. Infelizmente, o Motofour acabou sendo uma obra inacabada.", conclui Pandini.

O único protótipo do Motofour ainda existia em 2001, quando o Best Cars, com o apoio da família de João Gurgel, obteve autorização para fotografá-lo em uma oficina de São Paulo. Sem uso por vários anos, o carrinho requeria alguns cuidados para voltar a rodar, mas mantinha a extrema simplicidade e a curiosa posição de dirigir central. Nem mesmo a colocação da alavanca de câmbio chegou a ser modificada.


Foto: Fabrício Samahá

Uma conversa com João Gurgel
por Luiz Alberto Pandini
Uma das primeiras marcas que conheci quando era garoto e comecei a gostar de carros foi a Gurgel. Aos sete ou oito anos, eu ainda nem sabia se a pronúncia correta era Gurgél ou Gúrgel (que descobri depois ser errada), mas já nutria simpatia com aqueles jipinhos com cara de bugue.

Fui crescendo e constantemente lia sobre novidades da Gurgel. Novos modelos, pesquisas com carros elétricos, tentativas de se fazer um verdadeiro "carro popular"... Revistas antigas também tinham referências a idéias diferentes. Em 1972, a Gurgel chegou a construir um protótipo de carro anfíbio, que se chamaria Transamazônica ou simplesmente "Transa". Também lia reportagens sobre João Gurgel e, sem conhecê-lo, simpatizava muito com suas idéias, seu entusiasmo de empreendedor, seu idealismo.

O tempo passou e, em meados de 1996, eu era editor-chefe de uma revista especializada em automóveis. A Gurgel estava fechada já havia uns dois anos. Um dia, tive a idéia de fazer uma reportagem especial sobre a marca. Minha intenção era mostrar o que havia sido a Gurgel e, principalmente, o que estava fazendo João Gurgel e quais seriam seus planos para o futuro.

Consegui um contato com Lucas, um ex-funcionário da fábrica que continuava trabalhando com Gurgel, e ele se prontificou a marcar uma entrevista. Perguntei-lhe ao telefone como estava o patrão e lembro-me de ter ouvido como resposta algo como "o homem está a mil por hora!". Eu finalmente ia conhecer aquele personagem sobre quem tanto havia lido na infância e na adolescência.

Dias depois, cheguei a uma casa em uma travessa da Avenida Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. Não havia placa ou qualquer coisa que identificasse a casa como um local de trabalho. A varanda havia sido transformada em recepção e a sala principal em escritório. Os outros cômodos (pelo menos os que visitei) estavam repletos de móveis, papéis e arquivos. Toda a história da Gurgel estava ali, guardada da melhor maneira possível.

Um pôster na parede mostrava João Gurgel com Tarcísio Meira e Glória Menezes no dia em que o casal de atores retirou um jipe Carajás. Nos fundos da casa, uma garagem estava atulhada de peças. E, na entrada lateral para a garagem, estava o protótipo do Motofour (leia acima).
João Gurgel era como eu imaginava e vira nas fotos: jovial (apesar de já estar naquela época com 70 anos), bem disposto e dinâmico. Muito simpático, não se furtou a falar sobre tudo o que aconteceu com sua fábrica. Estava falido e havia perdido boa parte de seu patrimônio pessoal, mas — com a certeza de quem acreditava em si mesmo — manteve a cabeça erguida e estava cheio de planos para o futuro.

Havia criado a Santos Dumont Motores e Componentes (Gurgel não perdera seus princípios de homenagear pessoas e lugares brasileiros) e, segundo me disse naquele dia, conversara com representantes do governo de Cuba sobre a possibilidade de montar uma fábrica por lá. Durante boa parte da entrevista, o tema dominante foi o fechamento da Gurgel.

"O governo do Ceará acenou com muitas promessas e eu cumpri meu compromisso de construir a fábrica naquele estado. Mas não tive a contrapartida", explicou. Em seguida, mostrou um vídeo da cerimônia de inauguração da fábrica, em dezembro de 1991. O governador Ciro Gomes discursou enaltecendo as qualidades da Gurgel e todo o progresso que a fábrica levaria para o Ceará. "Só que ele nunca cumpriu as promessas e jamais me explicou as razões disso", acrescentou.

A entrevista com Gurgel e a avaliação do Motofour tomaram-me uma manhã inteira. Eu havia gostado muito do encontro. Lembro-me de um detalhe curioso. Naquela época eu fumava, mas não havia nenhum cinzeiro no escritório. Isso significava que, com grande probabilidade (quem é ou foi fumante sabe bem disso...), o fumo não era visto com bons olhos naquela casa, e tratei de me segurar. Quando estávamos nos despedindo, já na rua, puxei minha caixinha de cigarros.

Foi aí que fiquei sabendo: João Gurgel sempre foi um antitabagista convicto e praticante! Se eu acendesse um cigarro dentro de sua casa, estaria cometendo um verdadeiro ato de profanação... Em sua fábrica, o cigarro era proibido em todas as dependências, mas alguns funcionários fumavam escondido nos banheiros. Ao saber disso, Gurgel passou a deixar grandes baldes de água sempre cheios em um canto. Acima deles, lia-se a instrução: "Se você vir fumaça, jogue água porque é incêndio". Isto sim é senso de humor...

Luiz Alberto Pandini foi colunista do Best Cars de 2000 a 2003

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