Uma das primeiras marcas
que conheci quando era garoto e comecei a gostar de carros foi a
Gurgel. Aos sete ou oito anos, eu ainda nem sabia se a pronúncia
correta era Gurgél ou Gúrgel (que descobri depois ser errada),
mas já nutria simpatia com aqueles jipinhos com cara de bugue.
Fui crescendo e constantemente lia sobre novidades da Gurgel.
Novos modelos, pesquisas com carros elétricos, tentativas de se
fazer um verdadeiro "carro popular"... Revistas antigas também
tinham referências a idéias diferentes. Em 1972, a Gurgel chegou
a construir um protótipo de carro anfíbio, que se chamaria
Transamazônica ou simplesmente "Transa". Também lia reportagens
sobre João Gurgel e, sem conhecê-lo, simpatizava muito com suas
idéias, seu entusiasmo de empreendedor, seu idealismo.
O tempo passou e, em meados de 1996, eu era editor-chefe de uma
revista especializada em automóveis. A Gurgel estava fechada já
havia uns dois anos. Um dia, tive a idéia de fazer uma
reportagem especial sobre a marca. Minha intenção era mostrar o
que havia sido a Gurgel e, principalmente, o que estava fazendo
João Gurgel e quais seriam seus planos para o futuro.
Consegui um contato com Lucas, um ex-funcionário da fábrica que
continuava trabalhando com Gurgel, e ele se prontificou a marcar
uma entrevista. Perguntei-lhe ao telefone como estava o patrão e
lembro-me de ter ouvido como resposta algo como "o homem está a
mil por hora!". Eu finalmente ia conhecer aquele personagem
sobre quem tanto havia lido na infância e na adolescência.
Dias depois, cheguei a uma casa em uma travessa da Avenida
Brigadeiro Faria Lima, em São Paulo. Não havia placa ou qualquer
coisa que identificasse a casa como um local de trabalho. A
varanda havia sido transformada em recepção e a sala principal
em escritório. Os outros cômodos (pelo menos os que visitei)
estavam repletos de móveis, papéis e arquivos. Toda a história
da Gurgel estava ali, guardada da melhor maneira possível.
Um pôster na parede mostrava João Gurgel com Tarcísio Meira e
Glória Menezes no dia em que o casal de atores retirou um jipe
Carajás. Nos fundos da casa, uma garagem estava atulhada de
peças. E, na entrada lateral para a garagem, estava o protótipo
do Motofour (leia acima). |
João Gurgel era como eu
imaginava e vira nas fotos: jovial (apesar de já estar naquela
época com 70 anos), bem disposto e dinâmico. Muito simpático,
não se furtou a falar sobre tudo o que aconteceu com sua
fábrica. Estava falido e havia perdido boa parte de seu
patrimônio pessoal, mas — com a certeza de quem acreditava em si
mesmo — manteve a cabeça erguida e estava cheio de planos para o
futuro.
Havia criado a Santos Dumont Motores e Componentes (Gurgel não
perdera seus princípios de homenagear pessoas e lugares
brasileiros) e, segundo me disse naquele dia, conversara com
representantes do governo de Cuba sobre a possibilidade de
montar uma fábrica por lá. Durante boa parte da entrevista, o
tema dominante foi o fechamento da Gurgel.
"O governo do Ceará acenou com muitas promessas e eu cumpri meu
compromisso de construir a fábrica naquele estado. Mas não tive
a contrapartida", explicou. Em seguida, mostrou um vídeo da
cerimônia de inauguração da fábrica, em dezembro de 1991. O
governador Ciro Gomes discursou enaltecendo as qualidades da
Gurgel e todo o progresso que a fábrica levaria para o Ceará.
"Só que ele nunca cumpriu as promessas e jamais me explicou as
razões disso", acrescentou.
A entrevista com Gurgel e a avaliação do Motofour tomaram-me uma
manhã inteira. Eu havia gostado muito do encontro. Lembro-me de
um detalhe curioso. Naquela época eu fumava, mas não havia
nenhum cinzeiro no escritório. Isso significava que, com grande
probabilidade (quem é ou foi fumante sabe bem disso...), o fumo
não era visto com bons olhos naquela casa, e tratei de me
segurar. Quando estávamos nos despedindo, já na rua, puxei minha
caixinha de cigarros.
Foi aí que fiquei sabendo: João Gurgel sempre foi um
antitabagista convicto e praticante! Se eu acendesse um cigarro
dentro de sua casa, estaria cometendo um verdadeiro ato de
profanação... Em sua fábrica, o cigarro era proibido em todas as
dependências, mas alguns funcionários fumavam escondido nos
banheiros. Ao saber disso, Gurgel passou a deixar grandes baldes
de água sempre cheios em um canto. Acima deles, lia-se a
instrução: "Se você vir fumaça, jogue água porque é incêndio".
Isto sim é senso de humor...
Luiz
Alberto Pandini foi colunista do Best Cars de 2000 a 2003 |