Protótipo do Delta, que seria feito no Ceará: simples e econômico, para ser montado em unidades regionais e vendido a menos de US$ 4.500

A economia de escala permitiria reduzir os preços públicos do Delta para 4.000 a 4.500 dólares e do Supermíni para 7.000 a 8.000 dólares — à cotação da época, notando-se que ao ser lançado, em 1994, o real valia quase o mesmo que o dólar. O Delta era pequeno e bastante simples, com certa semelhança ao BR-800 e ao Supermíni, dos quais tomaria emprestado o conjunto mecânico. Nos protótipos, a frente curta trazia faróis circulares, as portas tinham dobradiças externas (como no Fusca) e o estepe ficava na traseira, como em jipes. Os componentes externos eram de plástico e variações poderiam ser adotadas facilmente, como o uso de teto rígido ou de lona, removíveis, na parte traseira da cabine. Seu chassi era interessante: uma estrutura em torno das portas que passava pela frente, traseira, teto e ligava-se ao motor e às suspensões.

Depois de sondar outros estados, Gurgel propôs ao governador do Ceará, Tasso Jereissati, a implantação da fábrica. O terreno de 650.000 m² foi pago à vista — que diferença para os benefícios concedidos pelos governos estaduais na "guerra fiscal" por indústrias... Foi negociada com a Citroën a compra de 133 máquinas da produção do 2CV, que havia sido descontinuado, para fabricar caixas de câmbio, diferenciais e caixas de direção do Delta. Em dezembro de 1991 foi firmado um protocolo de intenções, em cerimônia pública em Fortaleza, no qual os governadores Ciro Gomes (Ceará) e Luiz Antônio Fleury Filho (São Paulo) anunciavam financiamento de US$ 30 milhões e US$ 50 milhões, na ordem. O Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, BNDES, entraria com mais US$ 80 milhões, se confirmada a participação dos governos estaduais, e US$ 25 milhões viriam da Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste, Sudene. Continua

Comida do solo, energia do subsolo
Durante os anos 80, fase de ascensão do álcool como combustível, João Gurgel manifestava-se radicalmente contra o programa de incentivos do governo, o Proálcool. Via como absurdo destinar terras férteis para alimentar veículos em vez de pessoas. E distribuía um adesivo (ao lado), mandado fazer por um admirador, que mostrava a crosta terrestre em corte, com lavoura em cima e petróleo embaixo, e os dizeres: "Comida do solo, energia do subsolo: use gasolina".

Com efeito, quando da apresentação do Supermíni, perguntado por um jornalista se haveria versão a álcool, Gurgel respondeu que não. Diante da surpresa dos presentes, acrescentou: "A partir de agora a Gurgel não produzirá mais nenhum modelo movido a álcool".

Em 1990, em entrevista a um órgão de imprensa, Gurgel reuniu seus argumentos. Alegava que o custo real do álcool, na época, era quase o triplo do custo da gasolina, sendo então subsidiado pelo governo para se tornar atrativo ao consumidor. Àquele tempo já sobrava gasolina no País, mas a importação de petróleo continuava necessária por causa do consumo interno de óleo diesel. Para Gurgel, as próprias usinas de álcool tinham culpa nisso.

"A usina é quase toda movida a diesel. Os usineiros não usam álcool nos seus equipamentos porque sairia muito caro. Um caminhão a álcool faz uns 800 metros por litro, enquanto a diesel faz 2,4 km/l", comparava, desafiando:
"Se nem o usineiro, que tem a fonte do álcool ali do seu lado, consegue torná-lo viável, como acreditar que possa ser uma solução para o resto da população?"

Gurgel defendia, como energia alternativa ao petróleo, os motores elétricos — foi o primeiro a desenvolver automóveis elétricos no Brasil. Sugeria a desativação gradual do álcool combustível, a conversão dos veículos a álcool para uso de gasolina de alta octanagem e o uso do combustível vegetal apenas como aditivo antidetonante para a gasolina, como ainda é usado.

Na época os preços dos combustíveis eram tabelados pelo governo e o da gasolina estava atrelado ao do álcool, de modo a garantir menor custo por quilômetro rodado com este último, apesar do consumo bem maior. Caso esse vínculo fosse rompido, explicava Gurgel, "o governo poderia vender gasolina pela metade do preço de hoje. Já imaginou o impacto disso sobre a economia?"
O Concorde e o Proálcool
Em março de 1986 João Gurgel fez publicar, na última página da revista especializada Motor 3, uma crônica onde relacionava o fracassado avião supersônico concebido por ingleses e franceses, o Concorde, a nosso programa de incentivo ao carro a álcool, o Proálcool. O Best Cars transcreve a seguir o artigo.

"Contou-me um amigo que, dez anos atrás, a polícia o fez parar pouco antes da Ponte de Austerlitz, em Paris. Ia a mais de 100 km/h pela via expressa da margem direita do Sena. Ao ver que sua carteira era brasileira, o policial hesitou, sorriu e desistiu da multa: 'Não temos o direito de penalizar um brasileiro por excesso de velocidade, justamente hoje no dia em que nosso Concorde está pousando no Rio de Janeiro pela primeira vez'.

Entre assustado e satisfeito, o amigo exclamou: 'Nada mal, heim!'

'Nada mal?', respondeu o policial, 'o Concorde é sem dúvida um sucesso tecnológico, mas economicamente é um fracasso, pois nos arruína a todos, não pode durar muito'.

De fato, o Programa Concorde não teve vida longa. O avião não se pagava, dependia do bolso dos contribuintes, e os governos francês e inglês, com sabedoria e dignidade, cessaram sua produção, levando em conta os interesses de seus países. Hoje apenas 14 unidades voam em algumas rotas especiais [Nota do Editor: o programa foi encerrado em definitivo em outubro de 2003]. O desenvolvimento tecnológico não foi perdido e talvez possa ser utilizado no futuro.

No Brasil seria diferente...

'Imaginemos o Concorde Brasileiro: seu lançamento foi festejado com Feriado Nacional. De início, todos queriam voar no 'nosso' supersônico. Aos poucos, porém, o seu índice de ocupação foi baixando e chegou a 10%. O que fazer?

Convoca-se uma reunião ministerial, para viabilizar a qualquer preço, por questão de princípio. Invoca-se a segurança nacional, a necessidade de desenvolver tecnologia própria, a economia de divisas na compra de aviões, e até os bilhões de dólares já investidos no supersônico.

Uma autoridade, profundamente empenhada no projeto do Concorde, sugeriu que se autorizasse, aos utilizadores do avião, descontar 50% do preço da passagem na declaração do Imposto de Renda. Aprovado por unanimidade.

Meses mais tarde o índice de ocupação havia subido, mas ainda era baixo: 25%. Nova reunião. Decidiu-se que seria oferecido aos passageiros do Concorde, pelo apoio que davam à tecnologia nacional, cinco dias de hotel em Paris ou Nova York, com entradas para os melhores espetáculos. Aumentou o número de brasileiros no Lido e no Moulin Rouge, mas o índice de ocupação subiu pouco, foi a uns 30%.

Que fazer? Era preciso atrair novos passageiros para o Concorde. As vantagens já oferecidas deviam ser mantidas para não comprometer o projeto do supersônico. Criou-se então o 'PRONASU', Programa Nacional do Supersônico. Todas as companhias que comprassem o avião teriam isenção do IPI e do ICM, além de um plano especial de financiamento com 18% de juros anuais sem correção monetária [N.E.: na época, pouco antes do Plano Cruzado, a inflação brasileira atingia a casa de dois dígitos por mês]. Por outro lado, as passagens seriam financiadas pela Caixa Econômica Federal. Poder-se-ia até mesmo organizar consórcios de viajantes pelo Concorde.
Invocando-se a nossa balança comercial, substituiu-se o combustível do Concorde pelo ORCM (Óleo Refinado do Capim Mimoso), a cujo cultivo foram dedicadas as melhores terras do País, com os melhores financiamentos, invadindo-se terra de cultivo de alimentos.

Dois problemas técnicos estavam resolvidos: tínhamos 'nosso' avião e o 'nosso' combustível. Só faltava aumentar ainda mais o índice de ocupação.

Nova reunião. Cada passagem do Concorde, d'ora em diante, dará simultaneamente direito a cinco passagens da ponte aérea São Paulo-Rio e uma São Paulo-Brasília. Foi proposta também, mas não aceita, a idéia de que os passageiros do Concorde não pagassem taxa de embarque. O índice de ocupação subiu a 60%.

Nova reunião. Decidiu-se indexar o preço da passagem do Concorde em 65% da passagem do Bongo 747, fabricado pela Aerobrás [N.E.: na época do artigo, o preço do álcool estava fixado em no máximo 65% do preço da gasolina, de modo a compensar seu menor rendimento em km/l]. A própria Aerobrás e os passageiros dos Bongos cobririam os prejuízos nas vendas das passagens do Concorde. A Aerobrás passou a perder um trilhão de cruzeiros por mês e o povo brasileiro muito mais... O índice de ocupação chegou a 80%.

Nova reunião. O Governo decidiu então que os Bongos 747 não mais poderiam se abastecer nos aeroportos brasileiros nos sábados e domingos. Golpe de mestre. O índice de ocupação no Concorde chegou aos 94% e a fabricação de novos Bongos se tornou inviável.

No apagar das luzes de Velha República, todas as televisões do País, em horário nobre, registravam a grande vitória: o 'PRONASU' tornou-se irreversível. Tecnologia nacional a serviço do País.

Brasil, o único país do mundo que conseguiu viabilizar o avião supersônico de passageiros.

Entretanto, a Nova República herda: uma economia arruinada, uma dívida externa de 100 bilhões de dólares, um fantástico déficit público, uma inflação a níveis nunca registrados na história do País, as melhores terras invadidas pelo Capim Mimoso, necessidade de importação de alimentos, problemas com bóias-frias, invasões de terras, greves em todos os setores e penosas negociações com nossos credores.

Apesar do quadro acima, ainda existem pressões para se manterem os subsídios e vantagens ao 'PRONASU'. E é neste triste quadro que a nossa 'Nova República' se debate...

Enquanto isso, o brasileiro, no chão, vendo o supersônico passar, olha assustado para o céu e diz: 'Lá vai o nosso Concorde, consumindo a ENERGIA DA NOSSA TERRA!'

De fato:
Voa pelos ares a nossa economia.
Voa pelos ares o controle da inflação.
Voa pelos ares a alimentação do nosso povo.
Voa pelos ares o nosso futuro.
Enfim, voa pelos ares a esperança de um Brasil melhor.

P.S.: Qualquer semelhança com o 'nosso' PROÁLCOOL não é mera coincidência. Concorde ou não..."

João Augusto Conrado do Amaral Gurgel, 21 de janeiro de 1986

Carros do Passado - Página principal - Escreva-nos

© Copyright - Best Cars Web Site - Todos os direitos reservados - Política de privacidade