Em março de 1986 João
Gurgel fez publicar, na última página da revista especializada
Motor 3, uma crônica onde relacionava o fracassado avião
supersônico concebido por ingleses e franceses, o Concorde, a
nosso programa de incentivo ao carro a álcool, o Proálcool. O
Best Cars transcreve a seguir o artigo.
"Contou-me um amigo que, dez anos atrás, a polícia o fez parar
pouco antes da Ponte de Austerlitz, em Paris. Ia a mais de 100
km/h pela via expressa da margem direita do Sena. Ao ver que sua
carteira era brasileira, o policial hesitou, sorriu e desistiu
da multa: 'Não temos o direito de penalizar um brasileiro por
excesso de velocidade, justamente hoje no dia em que nosso
Concorde está pousando no Rio de Janeiro pela primeira vez'.
Entre assustado e satisfeito, o amigo exclamou: 'Nada mal, heim!'
'Nada mal?', respondeu o policial, 'o Concorde é sem dúvida um
sucesso tecnológico, mas economicamente é um fracasso, pois nos
arruína a todos, não pode durar muito'.
De fato, o Programa Concorde não teve vida longa. O avião não se
pagava, dependia do bolso dos contribuintes, e os governos
francês e inglês, com sabedoria e dignidade, cessaram sua
produção, levando em conta os interesses de seus países. Hoje
apenas 14 unidades voam em algumas rotas especiais [Nota do
Editor: o programa foi encerrado em definitivo em outubro de
2003]. O desenvolvimento tecnológico não foi perdido e talvez
possa ser utilizado no futuro.
No Brasil seria diferente...
'Imaginemos o Concorde Brasileiro: seu lançamento foi festejado
com Feriado Nacional. De início, todos queriam voar no 'nosso'
supersônico. Aos poucos, porém, o seu índice de ocupação foi
baixando e chegou a 10%. O que fazer?
Convoca-se uma reunião ministerial, para viabilizar a qualquer
preço, por questão de princípio. Invoca-se a segurança nacional,
a necessidade de desenvolver tecnologia própria, a economia de
divisas na compra de aviões, e até os bilhões de dólares já
investidos no supersônico.
Uma autoridade, profundamente empenhada no projeto do Concorde,
sugeriu que se autorizasse, aos utilizadores do avião, descontar
50% do preço da passagem na declaração do Imposto de Renda.
Aprovado por unanimidade.
Meses mais tarde o índice de ocupação havia subido, mas ainda
era baixo: 25%. Nova reunião. Decidiu-se que seria oferecido aos
passageiros do Concorde, pelo apoio que davam à tecnologia
nacional, cinco dias de hotel em Paris ou Nova York, com
entradas para os melhores espetáculos. Aumentou o número de
brasileiros no Lido e no Moulin Rouge, mas o índice de ocupação
subiu pouco, foi a uns 30%.
Que fazer? Era preciso atrair novos passageiros para o Concorde.
As vantagens já oferecidas deviam ser mantidas para não
comprometer o projeto do supersônico. Criou-se então o 'PRONASU',
Programa Nacional do Supersônico. Todas as companhias que
comprassem o avião teriam isenção do IPI e do ICM, além de um
plano especial de financiamento com 18% de juros anuais sem
correção monetária [N.E.: na época, pouco antes do Plano
Cruzado, a inflação brasileira atingia a casa de dois dígitos
por mês]. Por outro lado, as passagens seriam financiadas pela
Caixa Econômica Federal. Poder-se-ia até mesmo organizar
consórcios de viajantes pelo Concorde. |
Invocando-se a nossa
balança comercial, substituiu-se o combustível do Concorde pelo
ORCM (Óleo Refinado do Capim Mimoso), a cujo cultivo foram
dedicadas as melhores terras do País, com os melhores
financiamentos, invadindo-se terra de cultivo de alimentos.
Dois problemas técnicos estavam resolvidos: tínhamos 'nosso'
avião e o 'nosso' combustível. Só faltava aumentar ainda mais o
índice de ocupação.
Nova reunião. Cada passagem do Concorde, d'ora em diante, dará
simultaneamente direito a cinco passagens da ponte aérea São
Paulo-Rio e uma São Paulo-Brasília. Foi proposta também, mas não
aceita, a idéia de que os passageiros do Concorde não pagassem
taxa de embarque. O índice de ocupação subiu a 60%.
Nova reunião. Decidiu-se indexar o preço da passagem do Concorde
em 65% da passagem do Bongo 747, fabricado pela Aerobrás [N.E.:
na época do artigo, o preço do álcool estava fixado em no máximo
65% do preço da gasolina, de modo a compensar seu menor
rendimento em km/l]. A própria Aerobrás e os
passageiros dos Bongos cobririam os prejuízos nas vendas das
passagens do Concorde. A Aerobrás passou a perder um trilhão de
cruzeiros por mês e o povo brasileiro muito mais... O índice de
ocupação chegou a 80%.
Nova reunião. O Governo decidiu então que os Bongos 747 não mais
poderiam se abastecer nos aeroportos brasileiros nos sábados e
domingos. Golpe de mestre. O índice de ocupação no Concorde
chegou aos 94% e a fabricação de novos Bongos se tornou
inviável.
No apagar das luzes de Velha República, todas as televisões do
País, em horário nobre, registravam a grande vitória: o 'PRONASU'
tornou-se irreversível. Tecnologia nacional a serviço do País.
Brasil, o único país do mundo que conseguiu viabilizar o avião
supersônico de passageiros.
Entretanto, a Nova República herda: uma economia arruinada, uma
dívida externa de 100 bilhões de dólares, um fantástico déficit
público, uma inflação a níveis nunca registrados na história do
País, as melhores terras invadidas pelo Capim Mimoso,
necessidade de importação de alimentos, problemas com
bóias-frias, invasões de terras, greves em todos os setores e
penosas negociações com nossos credores.
Apesar do quadro acima, ainda existem pressões para se manterem
os subsídios e vantagens ao 'PRONASU'. E é neste triste quadro
que a nossa 'Nova República' se debate...
Enquanto isso, o brasileiro, no chão, vendo o supersônico
passar, olha assustado para o céu e diz: 'Lá vai o nosso
Concorde, consumindo a ENERGIA DA NOSSA TERRA!'
De fato:
Voa pelos ares a nossa economia.
Voa pelos ares o controle da inflação.
Voa pelos ares a alimentação do nosso povo.
Voa pelos ares o nosso futuro.
Enfim, voa pelos ares a esperança de um Brasil melhor.
P.S.: Qualquer semelhança com o 'nosso' PROÁLCOOL não é mera
coincidência. Concorde ou não..."
João Augusto Conrado
do Amaral Gurgel, 21 de janeiro de 1986 |