O gênio, a criatividade e a
capacidade de surpreender do engenheiro João Gurgel não ficavam
restritos a suas atividades empresariais ou corporativas.
Gurgel sempre se destacou por ser inesperado em suas respostas e
avançado em relação a seu tempo. Alguns episódios de sua vida à
frente da única verdadeira fábrica nacional de automóveis
mostram bem seu caráter voluntarioso, irônico e — qualidade que
poucos possuem — capaz de reconhecer seus enganos e divertir-se
com eles.
Quando, por exemplo, começou a desenvolver seu projeto para um
carro econômico nacional, usando as iniciais dessas três
palavras, chamou-o de Cena. Sua idéia, quando lançasse o
veículo, seria um slogan tipo "o Cena entra na cena nacional".
Ocorre que a assessoria jurídica do saudoso piloto Ayrton Senna
entrou com uma ação impedindo o uso do nome Cena que, embora com
grafia diferente, tinha o mesmo som do nome do piloto.
João Gurgel nem quis discutir a questão. Mudou o nome para
projeto BR e desistiu do nome Cena, mas não sem antes chamar a
imprensa para comunicar a mudança e lembrar, mordaz: "Mas não
vamos esquecer que o rio Sena já corria na França muito antes do
Ayrton ser piloto..."
Ficou famoso também seu anúncio televisado do Supermíni, saindo
fácil de um congestionamento graças à agilidade e ao pequeno
tamanho, enquanto os demais carros, parados, buzinavam com sons
de balidos de ovelhas e o locutor afirmava em off: "Supermíni.
Saia do rebanho". Antes disso, no fim dos anos 70, inovou
lançando um utilitário da linha X-12 com os bancos estofados e a
capota rebatível em tecido blue jeans, para o
mercado jovem. Seu slogan: "Gurgel X-12 Jeans, o único
utilitário que desbota e perde o vinco".
Mas há um incidente que mostra muito bem como Gurgel pensava e
agia em sua vida empresarial. Na fábrica em Rio Claro, SP havia
reuniões semanais da diretoria. Numa dessas ocasiões, Gurgel
levou consigo uma peça, que havia apresentado problema no painel
de um X-12, e a exibiu, descrevendo em seguida as mudanças
que desejava. |
Cerca de 10 reuniões
depois, passados já mais de 60 dias, em outra reunião de
diretoria, o diretor técnico entregou a peça com as modificações
sugeridas. Gurgel pegou a peça. Sua cabeça sempre vivia a mil
por hora e, sem recordar o ocorrido, perguntou: "Quem foi o
idiota que pediu para fazer essa mudança?"
Silêncio penoso na sala de reuniões. Para contornar a situação,
o secretário consultou as anotações do livro de atas, e depois,
meio sem jeito, afirmou: "Quem pediu a alteração nessa peça foi
o senhor, dr. Gurgel."
Gurgel, ainda em dúvida, perguntou: "Fui eu mesmo?". E, ante a
resposta afirmativa e a desanuviada confirmação de todos os
presentes, completou: "Então vamos fazer assim de agora em
diante, porque este idiota sabe das coisas!"
Em uma de suas últimas aparições públicas formais, na
inauguração da fábrica em Fortaleza, no início da década de
1990, Gurgel, após os discursos do governador Ciro Gomes e de
outras autoridades, ergueu uma pequena menina no colo e afirmou
aos presentes:
"O Brasil fabrica muito bem um determinado produto, trabalhando
inclusive em muitas horas extras noturnas e sem qualquer
remuneração especial para isso: crianças. São quatro milhões de
novos brasileiros que nascem a cada ano. Desse total, cerca de
metade são homens. E da metade feminina, uma grande porcentagem
também buscará o mercado de trabalho dentro de alguns anos,
porque a vida moderna exige, cada vez mais, que homens e
mulheres trabalhem para sustentar a família. Logo, precisamos
gerar no mínimo três milhões de novos empregos por ano, ou não
estaremos agora produzindo brasileiros, mas sim futuros
marginais. Não estaremos criando cidadãos, mas sim párias
colocados desde seu nascimento à margem da cidadania."
Não parece profético, quando lido agora?
Paulo Celso Facin foi Editor Executivo da
revista Motor 3,
publicada entre 1980 e 1987 pela Editora Três |