Com mecânica VW "a ar", Gurgel fez os jipes X12 de grande sucesso e o curioso Xef; o BR-800 foi seu primeiro passo rumo ao carro popular

Na década de 1980, percebia a necessidade de desenhar um motor próprio para levar adiante seu plano de carro popular, que resultaria no Projeto Cena e, em 1988, no BR-800. Dele derivou o Supermíni, cujas linhas também inspiraram o Moto-Machine. Mas Gurgel tinha ideias mais avançadas para motorizar grande número de brasileiros.

O Projeto Delta   Ainda nos anos 80, o sonho do carro popular de Gurgel conduziu-o ao Projeto Delta. Ele pretendia produzir componentes em Fortaleza, CE e montar o carro em unidades regionais, criando 6.000 empregos diretos e 150.000 indiretos. A denominação do projeto era uma alusão à asa delta, idealizada por um engenheiro da Nasa (a agência do governo norte-americano encarregada do programa espacial) de sobrenome Rogallo, por isso conhecida por asa Rogallo naquele país. Assim como o homem só conseguira fazer voar com segurança e eficiência uma asa delta depois de ter voltado da Lua, o Delta se propunha a desenvolver e implantar numa fábrica de veículos o que Gurgel definia como "a tecnologia da simplicidade".

O Nordeste foi escolhido como base da fábrica pela necessidade de desenvolvimento da região — Gurgel sempre pensou de maneira abrangente sobre seu país. O Projeto Delta pretendia implantar um complexo industrial para a fabricação regionalizada de veículos. A Gurgel construiu em terreno próprio em Eusébio, perto de Fortaleza, uma fábrica de componentes mecânicos, a Gurgel Brasil S.A. Nela seriam produzidos basicamente caixas de câmbio, até então importadas da Argentina, e eixos traseiros motrizes, mantendo-se em Rio Claro, SP, as instalações da Gurgel Motores para a produção de motores e dos demais componentes.

Carretas com contêineres fariam a ligação entre as duas cidades, levando em cada viagem 80 conjuntos de Rio Claro para Fortaleza e trazendo outros 80 conjuntos de componentes na volta — aproveitando as duas viagens, que assim renderiam cada uma a produção de 160 veículos, reduzindo em muito os custos operacionais. Em Fortaleza, na Gurgel Brasil, com uso intensivo de mão-de-obra local e de terceirização, seriam montados os carros populares da linha Delta. E em Rio Claro, na Gurgel Motores, que passaria a integrar o patrimônio da Gurgel Brasil para reduzir as cargas tributárias, seriam mantidas as linhas mais caras como o Supermíni. Com esse sistema, o Delta seria fabricado de setembro de 1993 em diante à razão de 5.000 unidades ao mês, 60.000 por ano. Continua

Frases de João Gurgel
  • "Desde criança eu queria fabricar veículos: quando era garoto consertava carrinhos, bicicletas. Isso, creio, já indicava em mim certa aptidão para o negócio."
     
  • "Decidi que estava na hora de ficar independente. Me senti muito mais feliz, apesar das dificuldades, com a possibilidade de pensar uma coisa à noite e começar a realizá-la no outro dia de manhã" — em 1983, lembrando 1958, quando era o engenheiro mais bem pago da Ford e decidiu se demitir.
     
  • "Quando você tem uma ideia e não realizou nada, te consideram um louco. Quando já realizou alguma coisa, a loucura já não é tão grande. Até que acabam dizendo: 'Ele tem visão'" — no mesmo ano, em relação às tentativas de implantar o carro elétrico Itaipu nos anos 70.
     
  • "A satisfação psicológica é uma espécie de energia. Eu sou movido a entusiasmo" — em 1983, falando de sua disposição para ir à fábrica no meio da noite trabalhar em alguma idéia que tivesse quando em casa.
     
  • "A ideia que não puder realizar, eu vendo. A grande frustração do inventor e de quem trabalha em pesquisa é não ver realizado o que ele imaginou" — no mesmo ano, falando de projetos como um gerador movido a vento e casas à prova de som.
     
  • "Sou um misto de industrial, projetista e inventor. Sempre tive um lugar onde ganhar dinheiro e, ao lado, um outro onde gastar, fazendo o que eu queria fazer."
     
  • "O nosso carro vai ocupar o lugar do Fusca e tem todas as chances de ser um sucesso" — em 1988, referindo-se ao BR-800.
  • "Seremos uma alternativa para quem procura um carro econômico. Vamos fazer uma asa-delta em vez de um Concorde" — idem (curiosamente, Delta seria o nome do carro popular projetado mais tarde).
     
  • "Nosso funcionário chegou aqui preocupado por causa da multa, mas eu fiz foi uma festa" — em alusão ao motorista da empresa multado a 126 km/h com o BR-800, na rodovia Washington Luiz, já que a velocidade máxima do carrinho em piso plano estava ao redor de 110 km/h.
     
  • "Minha responsabilidade hoje é muito maior do que antes, quando só o meu dinheiro estava em jogo. A partir de agora, terei 10.000 amigos ou 10.000 inimigos" — em 1989, referindo-se aos compradores das ações que permitiram fabricar o BR-800.
     
  • "Posso ir à falência por incapacidade, erro de mercado, mas me recuso a ir à falência por decreto."
     
  • "O Projeto Delta poderá contribuir eficazmente no apoio aos programas governamentais contra a fome, a miséria e o desemprego, que colocam o nosso 'rico' país paradoxalmente entre os mais pobres do mundo."
     
  • "A Gurgel é a única empresa abaixo na linha do Equador que conseguiu projetar e construir seu próprio carro."
     
  • "Tem mil coisas que eu ainda gostaria de fazer, mas vejo que minha vida está acabando e não vou conseguir fazer nem uma fração delas. Às vezes, acho que o melhor para mim seria ter ido trabalhar na Disneylândia ou numa fábrica de brinquedos" — em 1983, aos 56 anos, antes mesmo de criar o BR-800.
Gurgel, o empresário
por Paulo Celso Facin
O gênio, a criatividade e a capacidade de surpreender do engenheiro João Gurgel não ficavam restritos a suas atividades empresariais ou corporativas.

Gurgel sempre se destacou por ser inesperado em suas respostas e avançado em relação a seu tempo. Alguns episódios de sua vida à frente da única verdadeira fábrica nacional de automóveis mostram bem seu caráter voluntarioso, irônico e — qualidade que poucos possuem — capaz de reconhecer seus enganos e divertir-se com eles.

Quando, por exemplo, começou a desenvolver seu projeto para um carro econômico nacional, usando as iniciais dessas três palavras, chamou-o de Cena. Sua idéia, quando lançasse o veículo, seria um slogan tipo "o Cena entra na cena nacional". Ocorre que a assessoria jurídica do saudoso piloto Ayrton Senna entrou com uma ação impedindo o uso do nome Cena que, embora com grafia diferente, tinha o mesmo som do nome do piloto.

João Gurgel nem quis discutir a questão. Mudou o nome para projeto BR e desistiu do nome Cena, mas não sem antes chamar a imprensa para comunicar a mudança e lembrar, mordaz: "Mas não vamos esquecer que o rio Sena já corria na França muito antes do Ayrton ser piloto..."

Ficou famoso também seu anúncio televisado do Supermíni, saindo fácil de um congestionamento graças à agilidade e ao pequeno tamanho, enquanto os demais carros, parados, buzinavam com sons de balidos de ovelhas e o locutor afirmava em off: "Supermíni. Saia do rebanho". Antes disso, no fim dos anos 70, inovou lançando um utilitário da linha X-12 com os bancos estofados e a capota rebatível em tecido blue jeans, para o mercado jovem. Seu slogan: "Gurgel X-12 Jeans, o único utilitário que desbota e perde o vinco".

Mas há um incidente que mostra muito bem como Gurgel pensava e agia em sua vida empresarial. Na fábrica em Rio Claro, SP havia reuniões semanais da diretoria. Numa dessas ocasiões, Gurgel levou consigo uma peça, que havia apresentado problema no painel de um X-12, e a exibiu, descrevendo em seguida as mudanças que desejava.
Cerca de 10 reuniões depois, passados já mais de 60 dias, em outra reunião de diretoria, o diretor técnico entregou a peça com as modificações sugeridas. Gurgel pegou a peça. Sua cabeça sempre vivia a mil por hora e, sem recordar o ocorrido, perguntou: "Quem foi o idiota que pediu para fazer essa mudança?"

Silêncio penoso na sala de reuniões. Para contornar a situação, o secretário consultou as anotações do livro de atas, e depois, meio sem jeito, afirmou: "Quem pediu a alteração nessa peça foi o senhor, dr. Gurgel."

Gurgel, ainda em dúvida, perguntou: "Fui eu mesmo?". E, ante a resposta afirmativa e a desanuviada confirmação de todos os presentes, completou: "Então vamos fazer assim de agora em diante, porque este idiota sabe das coisas!"

Em uma de suas últimas aparições públicas formais, na inauguração da fábrica em Fortaleza, no início da década de 1990, Gurgel, após os discursos do governador Ciro Gomes e de outras autoridades, ergueu uma pequena menina no colo e afirmou aos presentes:

"O Brasil fabrica muito bem um determinado produto, trabalhando inclusive em muitas horas extras noturnas e sem qualquer remuneração especial para isso: crianças. São quatro milhões de novos brasileiros que nascem a cada ano. Desse total, cerca de metade são homens. E da metade feminina, uma grande porcentagem também buscará o mercado de trabalho dentro de alguns anos, porque a vida moderna exige, cada vez mais, que homens e mulheres trabalhem para sustentar a família. Logo, precisamos gerar no mínimo três milhões de novos empregos por ano, ou não estaremos agora produzindo brasileiros, mas sim futuros marginais. Não estaremos criando cidadãos, mas sim párias colocados desde seu nascimento à margem da cidadania."

Não parece profético, quando lido agora?

Paulo Celso Facin foi Editor Executivo da revista Motor 3,
publicada entre 1980 e 1987 pela Editora Três

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