Data de publicação: 14/7/12

Temos esse e... esse mesmo

O mercado de automóveis cresceu, mas o leque de opções de
cores, portas, motores e câmbios continua insatisfatório

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editor

Entre altos e baixos, com ajuda da redução do Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e em meio a um cenário de demissões em massa, os números não deixam mentir: o mercado brasileiro de automóveis vai bem, obrigado. De acordo com a Federação Nacional da Distribuição de Veículos Automotores (Fenabrave), até junho foram emplacados 1,63 milhão de veículos entre automóveis e utilitários leves, o que projeta uma estimativa de 3,41 milhões de unidades para este ano. É volume para ninguém reclamar.

Apesar de tantos carros ganhando as ruas, o consumidor ainda se depara com a escassez de opções. Não que faltem marcas — nesse quesito, somados fabricantes locais e importadores, estamos entre os mercados mais variados do mundo. Também não são poucos os modelos disponíveis, dos pequenos de R$ 20 mil aos supercarros de vários milhões. Então, onde está o problema?

O problema é que as opções concentram-se ao redor de um padrão do qual é difícil escapar, não importa em que segmento se esteja ou quanto se pague pelo carro. É uma espécie de "efeito manada": as marcas percebem que características obtêm maior aceitação e se contentam em atender à maior parte dos compradores — e, se você não concorda com a maioria, o problema é seu.

Caso típico é o dos motores flexíveis em combustível. Quando surgiram, em 2003 (o VW Gol foi o primeiro), os carros que rodam com gasolina ou álcool representavam a oportunidade de usufruir o menor custo por quilômetro do derivado da cana de açúcar, então com preço muito atrativo, sem ficar nas mãos de seus produtores. Vacinado, o brasileiro sabia não poder confiar em que o álcool seria barato por muito tempo. Além disso, seu preço sempre variou conforme a época do ano (mais alto na entressafra, no verão) e a região do País (no Rio Grande do Sul, por exemplo, raramente compensou). Com a novidade, o motorista poderia usar gasolina quando viajasse para alguns locais ou durante os meses de alta do álcool.

Nove anos depois, o que vemos é que a finalidade do carro flexível se perdeu. Na melhor das hipóteses, como durante o inverno em estados como São Paulo, o álcool tem trazido vantagem desprezível em termos de custo por quilômetro (seu consumo mais alto, à razão de 40% a 45%, deve ser compensado por um preço no mínimo 30% mais baixo que o da gasolina, origem do fator 0,7 que se usa nesse cálculo). No resto do Brasil ou mesmo nos postos paulistas em outras épocas, ou se tem a equivalência ou menor custo usando gasolina.

O esperado, como reação do mercado, seria que fosse indiferente um carro ter ou não motor flexível e que outros aspectos fossem mais importantes na decisão de compra — como o consumo efetivo com gasolina, que a maioria acaba usando. No entanto, parece que alguém decidiu que um carro monocombustível é ultrapassado, que o flexível é a escolha a se fazer. De repente, motores apenas a gasolina passaram de regra para exceção, tendência que alcançou vários modelos importados.

O que o consumidor perde com isso? Em uma palavra, eficiência. A prática tem mostrado que, mesmo após uma década de evolução, os motores flexíveis não conseguem funcionamento tão perfeito com ambos os combustíveis quanto se obtinha antes com um só deles. Alguns consomem demais com álcool, outros apresentam detonação com gasolina (mesmo que por instantes até que a central eletrônica atrase a ignição) ou perdem suavidade de operação com um ou outro. Caso se use apenas gasolina, o sistema de partida a frio fica com combustível sem consumir, que acaba por estragar. E, como não existe almoço grátis, o comprador paga por equipamentos e desenvolvimento que talvez nunca empregue.

Antes duas, hoje quatro
A imposição de padrões vai bem além. Há 15 ou 20 anos, carros de duas e três portas dominavam o mercado brasileiro, uma situação praticamente sem igual em âmbito mundial. Nunca entendi por que tantas famílias aqui se sujeitavam ao desconforto do acesso de passageiros por um vão apertado e, ainda, exigindo que o ocupante do banco dianteiro saísse para sua entrada ou saída. Alegava-se que as portas traseiras traziam ruídos adicionais ou risco às crianças (embora travas para elas existissem desde o Renault Dauphine de 1960), mas acredito mais em uma questão cultural, já que nossa motorização se baseou no Fusca. Curiosamente, embora muitos rejeitassem os carros de quatro portas por "parecerem táxis", o que mais existia na praça era modelo de duas portas...

Nos anos 90 a preferência mundial por quatro ou cinco portas começou a ganhar relevo também no Brasil. Em alguns anos o mercado já estava claramente favorável aos automóveis com portas traseiras, a ponto de passar a rejeitar os de duas portas. Esta opção foi-se escasseando e hoje está restrita a alguns modelos compactos, em geral na base do mercado, e a uns poucos esportivos.

O que o mercado perdeu foi, mais uma vez, o direito de escolha. Um jovem solteiro compra um Fiat Punto TJet, por exemplo, e as portas traseiras vêm como imposição, o que não acontece na Europa. Sedãs médios de bom desempenho, temos vários, mas nenhum cupê derivado da mesma linha como o Honda Civic vendido nos Estados Unidos. Se a maioria prefere a conveniência das portas a mais, por que a minoria que não as quer tem de aceitá-las?

Caso semelhante foi o dos câmbios. Até a década de 1990 as caixas automáticas eram raras por aqui, repetindo o padrão europeu, apesar da influência norte-americana que tivemos nas primeiras décadas de nossa indústria (vieram dos EUA os projetos de carros maiores de Chrysler, Ford e Willys, além da mecânica do Chevrolet Opala). Em geral tais câmbios elevavam muito o consumo, prejudicavam o desempenho e, sobretudo, tinham manutenção complexa.

Em parte pelo aprimoramento das caixas, em parte por uma mudança de conceitos do mercado, a situação se reverteu: hoje, acredito que a maioria quer o câmbio automático e só abre mão dele por questão de custo. Em segmentos nos quais o fator preço é menos decisivo, como em carros acima de R$ 60 mil, os manuais já são raros; nos modelos de mais de R$ 100 mil, contam-se nos dedos. Até importadores de carros esporte têm oferecido apenas o automático ou automatizado, caso da Porsche com o novo 911, a Audi e a Mercedes-Benz com suas linhas inteiras e a BMW com quase toda a sua (o 1 M Coupe fica entre as exceções).

As fábricas alegam que o trânsito dos grandes centros leva a uma grande rejeição ao pedal de embreagem — não é por outro motivo que temos aceitado bem os câmbios automatizados de embreagem única, uma solução barata e de resultados questionáveis que quase não encontra espaço nos mercados desenvolvidos. Mas e quem quiser abrir mão do conforto para poder trocar marchas pelo velho método em "H", no momento desejado, ou mesmo fazer um belo punta-tacco pela coordenação perfeita dos três pedais? Como fica? Em grande parte das marcas, terá de se contentar com um sistema eletrônico para fazer tais tarefas para si.

Não poderia faltar nessa lista a escassez de opções de cores, sejam externas ou internas. Se o mercado determina que os tons de boa aceitação são prata, cinza e preto — hoje também o branco, rejeitado até pouco tempo atrás —, esses são os que tomam conta da produção ou da importação e, portanto, da oferta das concessionárias. Azar de quem quiser ter um pouco de identidade e sair da mesmice. Ainda bem que algumas poucas marcas respeitam esse direito, ao menos em certos modelos.

Para o interior, pior: com raras exceções para o bege (disponível em alguns modelos Fiat, Toyota e Volkswagen de preço superior, por exemplo), o que existe à venda fica entre cinza e preto e, em geral, usa um só tom para toda a linha do modelo. Para quem não lembra ou não viveu aquele tempo, na década de 1980 — quando cada uma das grandes fábricas produzia uma fração do que produz hoje — havia automóveis com três, quatro opções de acabamento interno, e não só em versões de luxo.

Não consigo aceitar que tal variedade não mais seja viável. O que aconteceu de fato? Tornamo-nos pessoas sem identidade que se contentam em comprar um carro igual ao do vizinho? Abrimos mão de nossas preferências em nome de uma suposta facilidade de revenda, embora na hora "H" nosso carro flexível, prata e de quatro portas seja desvalorizado da mesma forma? Ou, para a indústria e suas concessionárias, atender bem ao consumidor tem hoje menos importância que há 30 anos? Quem tiver a resposta, por favor, me conte.

Nunca entendi por que tantas famílias, aqui, se sujeitavam ao desconforto do acesso de passageiros por um vão apertado
Editorial anterior
 
blog comments powered by Disqus

Página principal - Envie por e-mail

© Copyright - Best Cars Web Site - Todos os direitos reservados - Política de privacidade