Entre altos e baixos, com ajuda da redução do Imposto sobre Produtos
Industrializados (IPI) e em meio a um cenário de demissões em massa,
os números não deixam mentir: o mercado brasileiro de automóveis vai
bem, obrigado. De acordo com a Federação Nacional da Distribuição de
Veículos Automotores (Fenabrave), até junho foram emplacados 1,63
milhão de veículos entre automóveis e utilitários leves, o que
projeta uma estimativa de 3,41 milhões de unidades para este ano. É
volume para ninguém reclamar.
Apesar de tantos carros ganhando as ruas, o consumidor ainda se
depara com a escassez de opções. Não que faltem marcas — nesse
quesito, somados fabricantes locais e importadores, estamos entre os
mercados mais variados do mundo. Também não são poucos os modelos
disponíveis, dos pequenos de R$ 20 mil aos supercarros de vários
milhões. Então, onde está o problema?
O problema é que as opções concentram-se ao redor de um padrão do
qual é difícil escapar, não importa em que segmento se esteja ou
quanto se pague pelo carro. É uma espécie de "efeito manada": as
marcas percebem que características obtêm maior aceitação e se
contentam em atender à maior parte dos compradores — e, se você não
concorda com a maioria, o problema é seu.
Caso típico é o dos motores flexíveis em combustível. Quando
surgiram, em 2003 (o VW Gol foi o primeiro), os carros que rodam com
gasolina ou álcool representavam a oportunidade de usufruir o menor
custo por quilômetro do derivado da cana de açúcar, então com preço
muito atrativo, sem ficar nas mãos de seus produtores. Vacinado, o
brasileiro sabia não poder confiar em que o álcool seria barato por
muito tempo. Além disso, seu preço sempre variou conforme a época do
ano (mais alto na entressafra, no verão) e a região do País (no Rio
Grande do Sul, por exemplo, raramente compensou). Com a novidade, o
motorista poderia usar gasolina quando viajasse para alguns locais
ou durante os meses de alta do álcool.
Nove anos depois, o que vemos é que a finalidade do carro flexível
se perdeu. Na melhor das hipóteses, como durante o inverno em
estados como São Paulo, o álcool tem trazido vantagem desprezível em
termos de custo por quilômetro (seu consumo mais alto, à razão de
40% a 45%, deve ser compensado por um preço no mínimo 30% mais baixo
que o da gasolina, origem do fator 0,7 que se usa nesse cálculo). No
resto do Brasil ou mesmo nos postos paulistas em outras épocas, ou
se tem a equivalência ou menor custo usando gasolina.
O esperado, como reação do mercado, seria que fosse indiferente um
carro ter ou não motor flexível e que outros aspectos fossem mais
importantes na decisão de compra — como o consumo efetivo com
gasolina, que a maioria acaba usando. No entanto, parece que alguém
decidiu que um carro monocombustível é ultrapassado, que o flexível
é a escolha a se fazer. De repente, motores apenas a gasolina
passaram de regra para exceção, tendência que alcançou vários
modelos importados.
O que o consumidor perde com isso? Em uma palavra, eficiência. A
prática tem mostrado que, mesmo após uma década de evolução, os
motores flexíveis não conseguem funcionamento tão perfeito com ambos
os combustíveis quanto se obtinha antes com um só deles. Alguns
consomem demais com álcool, outros apresentam
detonação com gasolina (mesmo que
por instantes até que a central eletrônica atrase a ignição) ou
perdem suavidade de operação com um ou outro. Caso se use apenas
gasolina, o sistema de partida a frio fica com combustível sem
consumir, que acaba por estragar. E, como não existe almoço grátis,
o comprador paga por equipamentos e desenvolvimento que talvez nunca
empregue. |
Antes duas, hoje quatro
A imposição de padrões vai bem além. Há 15 ou 20 anos, carros de
duas e três portas dominavam o mercado brasileiro, uma situação
praticamente sem igual em âmbito mundial. Nunca entendi por que
tantas famílias aqui se sujeitavam ao desconforto do acesso de
passageiros por um vão apertado e, ainda, exigindo que o ocupante do
banco dianteiro saísse para sua entrada ou saída. Alegava-se que as
portas traseiras traziam ruídos adicionais ou risco às crianças
(embora travas para elas existissem desde o Renault Dauphine de
1960), mas acredito mais em uma questão cultural, já que nossa
motorização se baseou no Fusca. Curiosamente, embora muitos
rejeitassem os carros de quatro portas por "parecerem táxis", o que
mais existia na praça era modelo de duas portas...
Nos anos 90 a preferência mundial por quatro ou cinco portas começou
a ganhar relevo também no Brasil. Em alguns anos o mercado já estava
claramente favorável aos automóveis com portas traseiras, a ponto de
passar a rejeitar os de duas portas. Esta opção foi-se escasseando e
hoje está restrita a alguns modelos compactos, em geral na base do
mercado, e a uns poucos esportivos.
O que o mercado perdeu foi, mais uma vez, o direito de escolha. Um
jovem solteiro compra um Fiat Punto TJet, por exemplo, e as portas
traseiras vêm como imposição, o que não acontece na Europa. Sedãs
médios de bom desempenho, temos vários, mas nenhum cupê derivado da
mesma linha como o Honda Civic vendido nos Estados Unidos. Se a
maioria prefere a conveniência das portas a mais, por que a minoria
que não as quer tem de aceitá-las?
Caso semelhante foi o dos câmbios. Até a década de 1990 as caixas
automáticas eram raras por aqui, repetindo o padrão europeu, apesar
da influência norte-americana que tivemos nas primeiras décadas de
nossa indústria (vieram dos EUA os projetos de carros maiores de
Chrysler, Ford e Willys, além da mecânica do Chevrolet Opala). Em
geral tais câmbios elevavam muito o consumo, prejudicavam o
desempenho e, sobretudo, tinham manutenção complexa.
Em parte pelo aprimoramento das caixas, em parte por uma mudança de
conceitos do mercado, a situação se reverteu: hoje, acredito que a
maioria quer o câmbio automático e só abre mão dele por questão de
custo. Em segmentos nos quais o fator preço é menos decisivo, como
em carros acima de R$ 60 mil, os manuais já são raros; nos modelos
de mais de R$ 100 mil, contam-se nos dedos. Até importadores de
carros esporte têm oferecido apenas o automático ou automatizado,
caso da Porsche com o novo 911, a Audi e a Mercedes-Benz com suas
linhas inteiras e a BMW com quase toda a sua (o 1 M Coupe fica entre
as exceções).
As fábricas alegam que o trânsito dos grandes centros leva a uma
grande rejeição ao pedal de embreagem — não é por outro motivo que
temos aceitado bem os câmbios automatizados de embreagem única, uma
solução barata e de resultados questionáveis que quase não encontra
espaço nos mercados desenvolvidos. Mas e quem quiser abrir mão do
conforto para poder trocar marchas pelo velho método em "H", no
momento desejado, ou mesmo fazer um belo
punta-tacco pela coordenação perfeita dos três pedais? Como
fica? Em grande parte das marcas, terá de se contentar com um
sistema eletrônico para fazer tais tarefas para si.
Não poderia faltar nessa lista a escassez de opções de cores, sejam
externas ou internas. Se o mercado determina que os tons de boa
aceitação são prata, cinza e preto — hoje também o branco, rejeitado
até pouco tempo atrás —, esses são os que tomam conta da produção ou
da importação e, portanto, da oferta das concessionárias. Azar de
quem quiser ter um pouco de identidade e sair da mesmice. Ainda bem
que algumas poucas marcas respeitam esse direito, ao menos em certos
modelos.
Para o interior, pior: com raras exceções para o bege (disponível em
alguns modelos Fiat, Toyota e Volkswagen de preço superior, por
exemplo), o que existe à venda fica entre cinza e preto e, em geral,
usa um só tom para toda a linha do modelo. Para quem não lembra ou
não viveu aquele tempo, na década de 1980 — quando cada uma das
grandes fábricas produzia uma fração do que produz hoje — havia
automóveis com três, quatro opções de acabamento interno, e não só
em versões de luxo.
Não consigo aceitar que tal variedade não mais seja viável. O que
aconteceu de fato? Tornamo-nos pessoas sem identidade que se
contentam em comprar um carro igual ao do vizinho? Abrimos mão de
nossas preferências em nome de uma suposta facilidade de revenda,
embora na hora "H" nosso carro flexível, prata e de quatro portas
seja desvalorizado da mesma forma? Ou, para a indústria e suas
concessionárias, atender bem ao consumidor tem hoje menos
importância que há 30 anos? Quem tiver a resposta, por favor, me
conte. |
Nunca entendi
por que tantas famílias, aqui, se sujeitavam ao desconforto do
acesso de passageiros por um vão apertado |