O trabalhoso batismo das versões

Entre nomes e siglas, os fabricantes precisam ser criativos para não
caírem na mesmice — e não raro recorrem a sua própria história

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editor

Para o departamento de marketing de um fabricante, encontrar um bom nome para um novo carro é talvez a mais difícil tarefa, assunto que já comentamos aqui nas edições 304 e 346. E a segunda mais difícil, ao que parece, é encontrar boas designações para suas versões.

Mesmo quando se recorre ao método mais comum — siglas —, dá certo trabalho. Por ser a forma mais usada pela indústria, há grande chance de recair nas mesmas siglas da concorrência. Exemplos? GL já apareceu nas "quatro grandes" marcas instaladas no Brasil e GLS só não foi usado pela Ford. Outra frequente é GT (apenas a Fiat ainda não aplicou), que significa grã-turismo e sugere um carro de alto desempenho, embora em muitos casos encontrar tal esportividade seja um desafio.

O significado das siglas raramente é divulgado e muitas vezes não se mostra coerente com o que o carro oferece. Quando consultadas, as fábricas costumam dar respostas evasivas ou dizer que são apenas combinações de letras com sonoridade agradável. De fato, vez ou outra elas chegam a siglas brilhantes como a VTS do antigo Citroën Xsara, que tinha pronúncia próxima à da palavra francesa para velocidade: vitesse.

Hoje parece haver uma tendência pelo uso de nomes, talvez pelo cansaço das siglas de sempre. A Fiat usa Economy, Attractive, Essence, Sporting, Adventure, Absolute e outros; a Volkswagen, Comfortline, Sportline, Trend e Prime e alguns mais; a Renault trabalha com Authentique, Expression, Dynamique. A Citroën usa apenas em acabamentos de topo (Exclusive) e a Ford só em alguns modelos, como Edge e Ranger Limited, Focus Titanium e EcoSport Freestyle. Já a General Motors e a Peugeot, que usavam nomes alguns anos atrás, hoje preferem siglas para a maior parte de suas linhas.

Há versões que se tornam marcantes para um fabricante, a ponto de serem usadas outra vez. Para a Ford, o Escort XR3 foi por mais de 10 anos um sonho de consumo de muitos, o que certamente a levou a usar XR no Ka e no Focus. No exterior houve diversas variações dessa sigla, como XR2 para o Fiesta, XR4 para o Sierra, XR6 para o Falcon australiano e XR7 para o Mercury Cougar norte-americano, que nem Ford era. Outra tradição da marca foi o nome Ghia, do estúdio de estilo adquirido por ela nos anos 70. Mas, depois de numerosos modelos na Europa, na Austrália e aqui na América do Sul por mais de três décadas, a marca foi descartada.

Na Volkswagen, GTi — com o "i" minúsculo referente à injeção eletrônica — foi criado para o Golf esportivo em 1976 (a Maserati já havia usado em seu 3500, mas com letra maiúscula para Internazionale) e se tornou sinônimo de carro compacto e potente na Europa. Aqui, GT, GTS e GTi referiam-se a Gols muito desejados nos anos 80 e 90 e a última sigla teve seguimento no Golf. A versão GT, ainda disponível no Golf e até há pouco no Polo, parece querer lembrar aqueles tempos de prestígio. Já a Fiat, que chamava atenção há 20 anos com os Unos 1.5R e 1.6R, não hesitou em chamar de 1.8R o Palio mais esportivo lançado em 2006.

O fenômeno ocorre também no exterior e em marcas de prestígio. Na Ferrari, GTO (Gran Turismo Omologato, homologado para competição) começou em 1962 com o 250, reapareceu em 1984 no 288 e, há pouco tempo, voltou em um derivado do 599 GTB. Outro retorno foi o de SV para o Lamborghini Murciélago, que retomou o batismo de sucesso do Miura dos anos 70, também usado por um Diablo. Na Porsche, Carrera surgiu ainda no pioneiro modelo 356, mas se tornou muito associado ao mais famoso 911. Outra designação, Targa, foi registrada pela marca alemã para seu meio-conversível e não pode ser usada por outras — embora a Lamborghini tenha pretendido fazê-lo em seu Diablo, que acabou chamado de Roadster.

Fale em Quadrifoglio e um alfista saberá que se trata de uma Alfa Romeo especial. Pronuncie Virage e os admiradores da Aston Martin terão a mesma impressão, enquanto Volante — voador em italiano — lhes remete a um conversível. Na Mercedes-Benz, além do charme da sigla AMG para as versões dessa "oficina de fábrica", o carisma do número 6.3, da veloz versão do 300 SEL lançada em 1968, explica por que os carros recentes com motor de 6,2 litros ganharam o sufixo 63 AMG.

Assim como S e RS para a Audi, a letra M tornou-se símbolo de desempenho para a BMW, seja à frente do número nos automóveis (M3, M5, M6) ou após a sigla nos utilitários esporte (X5 M, X6 M) e nos roadsters (Z3 M, Z4 M). A exceção foi o recente Série 1 M Coupe: apesar da tentação de batizá-lo como M1, prevaleceu o respeito à memória do supercarro de motor central dos anos 70, que era assim denominado.

Na Dodge, a marcante designação R/T (Road and Track, estrada e pista) dos carros "musculosos" foi mantida em seus carros mais vigorosos, até mesmo no Dakota brasileiro. Para a Chevrolet, ZR-1 ficou de tal modo associado a um Corvette muito potente que, quase 20 anos mais tarde, voltou a identificar sua versão de topo. E os fãs da Ford europeia sabem que a sigla RS, lá, não é usada por acaso desde que o Escort das décadas de 1960 e 1970 faturava ralis.

Válvulas, não: soupapes
Há siglas que informam sobre características técnicas, sendo Turbo e 16V as mais comuns. A letra final "i" indicou por muito tempo a presença de injeção, mas persiste em modelos como Honda Civic (Si) e quase todo BMW a gasolina. A Alfa costumava destacar a dupla ignição, com duas velas por cilindro, pela expressão Twin Spark. Na França, Renault e Peugeot algumas vezes preferiram 16S a 16V: "s" de soupapes, dentro do hábito daquele povo de evitar o uso do inglês, no qual "V" seria de valve.

O FSI de Audi e Volkswagen também se refere  a uma injeção — direta do tipo estratificada —, mas o "T" antes dessa sigla nem sempre é de turbo: no V6 de alguns Audis é usado para compressor. Já I-Motion (VW), Easytronic (GM) e Dualogic (Fiat) são nomes para as versões com câmbio automatizado e Blue Motion identifica, na linha VW, características que reduzem consumo e emissões.

Algumas marcas, como BMW e Mercedes-Benz, integram as versões ao próprio nome do modelo, que é também um número ou sigla. O modelo é BMW Série 3 ou Mercedes Classe C, mas o que designa a versão é 320i ou C 200, por exemplo. A numeração está relacionada ao motor, de forma cada vez mais flexível. No passado, um 750i era um Série 7 de 5,0 litros, e um C 200, um Classe C de 2,0 litros. Hoje há ampla liberdade de modo que o atual 750i tem apenas 4,4 litros (e já houve versões de 4,8 e 5,4 litros com tal designação) e o C 200 usa, na verdade, um 1,8-litro.

Em outros casos, um nome diferencia o tipo de carroceria sem recorrer a expressões manjadas como Hatch e Station Wagon. Na BMW, as peruas são chamadas de Touring; na Citroën, de Break; na VW alemã, de Variant; e na Opel, de Caravan (embora só o tenhamos usado aqui na linha Opala). A Renault adotou Nevada tanto para a perua 21 quanto para a Laguna, mas escolheu outro — Grand Tour — para a Mégane.

A Audi começou a empregar Avant para modelos hatchback, nos anos 70, e adaptou o termo para suas peruas na década seguinte. Quando surgiu uma nova safra de hatches, anos atrás, foi preciso criar outro nome — Sportback, hoje usado em A3, A5 e A7. Curioso foi a Mitsubishi lançar um Lancer hatch e sacar o mesmo nome da Audi. E ainda mais curioso foi a assessoria de imprensa da marca, após ler a notícia do Best Cars, vir nos pedir para não o chamarmos de hatch, alegando que ele seria um Sportback...

E não poderia faltar um excesso: o recurso frequente à renovação de versões, talvez para afastar os holofotes do fato de que os carros denominados por elas mudam muito pouco. Em 17 anos o Corsa usou nomes e siglas (Wind, Super, GL, GLS, GSi), passou um período sem versões (ao se tornar Classic em 2002), adotou novos nomes (Life, Spirit, Super) e voltou a siglas (LS, LT). No Clio, fabricado há 12 anos, as siglas (RL, RN e RT) deram lugar a nomes (Authentique, Expression, Privilège), mas restou apenas a versão Campus.

Difícil mesmo é superar o Uno — o original, de 1984 — como campeão em número de versões. Conte comigo: S, CS, SX, 1.5R, 1.6R, CSL, Turbo, 1.6 mpi e os Milles básico, Brio, Electronic (com ou sem o símbolo do Palácio da Alvorada ao lado), ELX, i.e., EP, Smart, SX, EX, Fire, Way, Economy... Ufa! Se os outros membros da família forem considerados, a lista cresce ainda mais, pois houve Prêmio SL, Elba Weekend e Top, Fiorino Pickup LX, Working e Trekking, entre outros. Acabou? Não: temos ainda edições limitadas como CS Top, Export e Mille Young.

Dá para imaginar o trabalho que o marketing da Fiat dá aos que elaboram tabelas de carros usados e os que lidam com tais informações, como lojas, seguradoras e... jornalistas especializados.

A letra final "i" indicou por muito tempo a presença de injeção, mas persiste em modelos como Honda Civic (Si) e quase todo BMW a gasolina


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Data de publicação: 5/11/11

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