Uma diversidade que se foi

Variados no começo de nossa indústria, os sistemas mecânicos
hoje seguem padrões que atendem a todas as categorias

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editor

Na década de 1960, período em que a indústria nacional engatinhava, o que não faltava era diversidade na concepção mecânica dos carros. O "bom senso em automóvel" — mote de campanhas da Volkswagen para seu Sedã, o Fusca — apostava em motor e tração traseiros, motor esse que tinha quatro cilindros opostos e refrigeração a ar. Com chassi do tipo plataforma, sua suspensão era independente nas quatro rodas e o câmbio tinha alavanca no assoalho.

Um de seus concorrentes mais diretos, o DKW-Vemag Belcar, era diferente em tudo: motor de três cilindros em linha — e a dois tempos! — refrigerado a líquido e montado na frente, onde também estava a tração; câmbio com alavanca na coluna de direção; chassi formado por vigas e suspensão traseira com eixo rígido. Havia ainda a opção do Renault Dauphine. Nele o motor tinha quatro cilindros em linha e, como no DKW, era refrigerado a água, mas estava na traseira como o do Fusca, sendo a tração também atrás. Em vez de chassi separado, o modelo de origem francesa usava estrutura monobloco; já a alavanca de câmbio no assoalho e a suspensão traseira independente seguiam os padrões do VW.

Em se tratando de carros médios e grandes, a diversidade não era menor. Havia sedãs com motores de quatro cilindros (FNM 2000 JK), seis cilindros em linha (Aero-Willys) e oito cilindros em "V" (os modelos Simca); com comando de válvulas no cabeçote (FNM) ou no bloco (todos os demais); com câmbio na coluna (FNM, por alguns anos, e Aero) ou no assoalho; com estrutura monobloco (os Simcas) ou chassi separado. Em comum, a tração era sempre traseira.

Com o tempo, algumas soluções foram se consagrando. O monobloco — mais leve e com boa rigidez torcional — ganhou a preferência de todas as marcas, embora o chassi separado tenha permanecido entre nossos automóveis até a extinção do Ford Galaxie/Landau, em 1983 (ainda é usado em picapes e nos utilitários esporte deles derivados). Também se tornou um padrão o câmbio com alavanca no assoalho, apesar da montagem na coluna ainda ter sido comum nos anos 70, até mesmo no período inicial do Chevrolet Opala.

A refrigeração a ar e a disposição de cilindros opostos, que a maior parte da gama VW abandonou na década de 1980, acompanharam o Fusca até sua segunda despedida, em 1996, e persistiram por mais 10 anos na Kombi, que hoje mantém viva a posição traseira do motor, caso único na produção local. Já peculiaridades como o motor a dois tempos e de três cilindros acabaram em 1967 junto da linha DKW que as introduziu, embora tenha havido nos anos 80 e 90 o Gurgel BR-800 (depois Supermini) com dois cilindros apenas. Em contrapartida, algo em que os modelos da Vemag foram únicos em seu ciclo de fabricação — a tração dianteira — consagrou-se a ponto de ser unanimidade, hoje, nos automóveis feitos aqui. Tração traseira ou integral, só em utilitários; dos carros, o último nacional foi o Chevrolet Omega em 1998.

Omega que também deixou no passado os motores de automóveis com seis cilindros. Os grandes V8 foram oferecidos pela Dodge até sua despedida, em 1981, e duraram mais dois anos no Landau. Depois deles, restou o seis-cilindros do Opala, que deu lugar aos de 3,0 litros (alemão) e 4,1 litros (nacional) do Omega. Quando este saiu de produção, havia estreado o de cinco cilindros do Fiat Marea, que durou até 2007, e a VW chegou a vender uma série limitada do Golf com seis, em 2003. Hoje, a contagem termina em quatro.

O comando de válvulas no cabeçote demorou um pouco a ganhar mercado: começou a se popularizar nos anos 70 com Chevrolet Chevette, VW Passat e Fiat 147; estendeu-se pelas linhas VW e GM na década seguinte e substituiu de vez o comando no bloco, em automóveis, quando a Ford trocou o antiquado motor de Ka e Fiesta por um mais atual em 1999.

E em suspensão? A independência entre as rodas traseiras, que era maioria em nossas ruas quando Fusca e Dauphine dominavam o mercado, tornou-se cada vez mais rara. É verdade que há suspensões atuais que levam essa característica a altos patamares de eficiência, como a multibraço do Ford Focus e a de braços sobrepostos do Honda Civic, mas uma solução alternativa, mais barata e com bons resultados, surgiu aqui com o Passat em 1974 e se espalhou por toda a indústria: o eixo de torção. Restaram com sistemas independentes mais simples alguns projetos já antigos, como Peugeot 207, Fiat Mille e Citroën Xsara Picasso.

Não foi por acaso
Curiosidades à parte, o que tudo isso representa? Mostra que a diversidade — no caso, em soluções técnicas — deu lugar à padronização. Enquanto nosso mercado ganhou vários fabricantes desde a década de 1990 e hoje produzimos um número de modelos muito maior que há 20 ou 40 anos, os conjuntos mecânicos foram-se tornando cada vez mais parecidos.

Claro que isso não aconteceu por acaso. Em muitos dos elementos citados, o que se viu foi um consenso sobre as soluções mais adequadas. Um motor arrefecido a ar não teria lugar no mundo de hoje, com restrições de emissões poluentes e ruídos que nem se poderiam cogitar quando o Fusca começou a conquistar o País. Motor traseiro até seria possível, como propôs recentemente a VW alemã com a série de conceitos Up, mas a própria empresa concluiu que não valeria a pena, do ponto de vista técnico, tentar ressuscitar a posição que foi por décadas uma de suas marcas.

Tração traseira ainda seria não só possível como desejada por muitos, pois a distribuição de tarefas entre os pneus — os dianteiros cuidam da direção, os traseiros da transmissão de potência ao solo — permite sensações ao volante que, para a provável maioria dos entusiastas, não têm substituto. Mesmo assim, uma das marcas mais fiéis à tração traseira, a BMW, afirma ter obtido em pesquisa que um elevado percentual de proprietários, no caso de seu modelo de entrada Série 1, desconhecia quais as rodas motrizes de seus carros. Assim, decidiu aderir à tração dianteira em um novo projeto de modelo compacto.

Quanto aos cilindros, se quatro deles permitem atender à estreita gama de cilindrada que a produção nacional de automóveis cobre hoje — de 1,0 a 2,0 litros —, por que investir em motores maiores e mais pesados, com cinco ou seis, ou apelar para unidades compactas de três cilindros, que vibram mais e não compartilham blocos com as de maior cilindrada? É o que certamente pensou a indústria.

Considere ainda o efeito que os marqueteiros chamam de benchmark, traduzível como referência: se um modelo com determinada concepção obtém grande sucesso, cria-se a tendência de que a concorrência copie suas soluções em busca do mesmo êxito. Esse efeito pode ter levado os avanços técnicos a se espalharem mais rápido pelo mercado, mas também tende a freá-los quando o carro bem-sucedido adota recursos mais simples ou tradicionais. É o que se vê hoje com o eixo traseiro de torção, presente em modelos líderes de vendas até nos segmentos mais altos da fabricação local.

Quer a padronização represente avanço ou retrocesso, acredita-se que as soluções consagradas sejam — se não as mais perfeitas — aquelas que melhor atendem ao compromisso entre o custo e o benefício, tão procurado tanto por quem fabrica e vende quanto por quem compra e usa. De qualquer forma, dá saudade das divertidas campanhas publicitárias do começo de nossa indústria, com quentes discussões sobre refrigeração a ar e a água, tração à frente e atrás e outras diferenças que o tempo apagou.

Em muitos dos elementos, o que se viu foi um consenso sobre as soluções mais adequadas. Um motor arrefecido a ar não teria lugar no mundo de hoje.

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Data de publicação: 4/6/11

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