Na
década de 1960, período em que a indústria nacional engatinhava, o
que não faltava era diversidade na concepção mecânica dos carros. O
"bom senso em automóvel" — mote de campanhas da Volkswagen para seu
Sedã, o Fusca — apostava em motor e tração traseiros, motor esse que
tinha quatro cilindros opostos e
refrigeração a ar. Com chassi do tipo plataforma, sua suspensão era
independente nas quatro rodas e o câmbio tinha alavanca no assoalho.
Um de seus concorrentes mais diretos, o DKW-Vemag Belcar, era
diferente em tudo: motor de três cilindros em linha — e a dois
tempos! — refrigerado a líquido e montado na frente, onde também
estava a tração; câmbio com alavanca na coluna de direção; chassi
formado por vigas e suspensão traseira com eixo rígido. Havia ainda
a opção do Renault Dauphine. Nele o motor tinha quatro cilindros em
linha e, como no DKW, era refrigerado a água, mas estava na traseira
como o do Fusca, sendo a tração também atrás. Em vez de chassi
separado, o modelo de origem francesa usava estrutura
monobloco; já a alavanca de câmbio
no assoalho e a suspensão traseira independente seguiam os padrões
do VW.
Em se tratando de carros médios e grandes, a diversidade não era
menor. Havia sedãs com motores de quatro cilindros (FNM 2000 JK),
seis cilindros em linha (Aero-Willys) e oito cilindros em "V" (os
modelos Simca); com comando de válvulas
no cabeçote (FNM) ou no bloco (todos os demais); com câmbio na
coluna (FNM, por alguns anos, e Aero) ou no assoalho; com estrutura
monobloco (os Simcas) ou chassi separado. Em comum, a tração era
sempre traseira.
Com o tempo, algumas soluções foram se consagrando. O monobloco —
mais leve e com boa rigidez torcional — ganhou a preferência de
todas as marcas, embora o chassi separado tenha permanecido entre
nossos automóveis até a extinção do Ford Galaxie/Landau, em 1983
(ainda é usado em picapes e nos utilitários esporte deles
derivados). Também se tornou um padrão o câmbio com alavanca no
assoalho, apesar da montagem na coluna ainda ter sido comum nos anos
70, até mesmo no período inicial do Chevrolet Opala.
A refrigeração a ar e a disposição de cilindros opostos, que a maior
parte da gama VW abandonou na década de 1980, acompanharam o Fusca
até sua segunda despedida, em 1996, e persistiram por mais 10 anos
na Kombi, que hoje mantém viva a posição traseira do motor, caso
único na produção local. Já peculiaridades como o motor a dois
tempos e de três cilindros acabaram em 1967 junto da linha DKW que
as introduziu, embora tenha havido nos anos 80 e 90 o Gurgel BR-800
(depois Supermini) com dois cilindros apenas. Em contrapartida, algo em que os modelos da Vemag
foram únicos em seu ciclo de fabricação — a tração dianteira —
consagrou-se a ponto de ser unanimidade, hoje, nos automóveis feitos
aqui. Tração traseira ou integral, só em utilitários; dos carros, o
último nacional foi o Chevrolet Omega em 1998.
Omega que também deixou no passado os motores de automóveis com seis
cilindros. Os grandes V8 foram oferecidos pela Dodge até sua
despedida, em 1981, e duraram mais dois anos no Landau. Depois
deles, restou o seis-cilindros do Opala, que deu lugar aos de 3,0
litros (alemão) e 4,1 litros (nacional) do Omega. Quando este saiu
de produção, havia estreado o de cinco cilindros do Fiat Marea, que
durou até 2007, e a VW chegou a vender uma série limitada do Golf
com seis, em 2003. Hoje, a contagem termina em quatro.
O comando de válvulas no cabeçote demorou um pouco a ganhar mercado:
começou a se popularizar nos anos 70 com Chevrolet Chevette, VW
Passat e Fiat 147; estendeu-se pelas linhas VW e GM na década
seguinte e substituiu de vez o comando no bloco, em automóveis,
quando a Ford trocou o antiquado motor de Ka e Fiesta por um mais
atual em 1999.
E em suspensão? A independência entre as rodas traseiras, que era
maioria em nossas ruas quando Fusca e Dauphine dominavam o mercado,
tornou-se cada vez mais rara. É verdade que há suspensões atuais que
levam essa característica a altos patamares de eficiência, como a
multibraço do Ford Focus e a de braços sobrepostos do Honda Civic,
mas uma solução alternativa, mais barata e com bons resultados,
surgiu aqui com o Passat em 1974 e se espalhou por toda a indústria:
o eixo de torção. Restaram com sistemas independentes mais simples
alguns projetos já antigos, como Peugeot 207, Fiat Mille e Citroën
Xsara Picasso. |
Não foi por acaso
Curiosidades à parte, o que tudo isso representa? Mostra que a
diversidade — no caso, em soluções técnicas — deu lugar à
padronização. Enquanto nosso mercado ganhou vários fabricantes desde
a década de 1990 e hoje produzimos um número de modelos muito maior
que há 20 ou 40 anos, os conjuntos mecânicos foram-se tornando cada
vez mais parecidos.
Claro que isso não aconteceu por acaso. Em muitos dos elementos
citados, o que se viu foi um consenso sobre as soluções mais
adequadas. Um motor arrefecido a ar não teria lugar no mundo de
hoje, com restrições de emissões poluentes e ruídos que nem se
poderiam cogitar quando o Fusca começou a conquistar o País. Motor
traseiro até seria possível, como propôs recentemente a VW alemã com
a série de conceitos Up, mas a própria empresa concluiu que não
valeria a pena, do ponto de vista técnico, tentar ressuscitar a
posição que foi por décadas uma de suas marcas.
Tração traseira ainda seria não só possível como desejada por
muitos, pois a distribuição de tarefas entre os pneus — os
dianteiros cuidam da direção, os traseiros da transmissão de
potência ao solo — permite sensações ao volante que, para a provável
maioria dos entusiastas, não têm substituto. Mesmo assim, uma das
marcas mais fiéis à tração traseira, a BMW, afirma ter obtido em
pesquisa que um elevado percentual de proprietários, no caso de seu
modelo de entrada Série 1, desconhecia quais as rodas motrizes de
seus carros. Assim, decidiu aderir à tração dianteira em um novo
projeto de modelo compacto.
Quanto aos cilindros, se quatro deles permitem atender à estreita
gama de cilindrada que a produção nacional de automóveis cobre hoje
— de 1,0 a 2,0 litros —, por que investir em motores maiores e mais
pesados, com cinco ou seis, ou apelar para unidades compactas de
três cilindros, que vibram mais e não compartilham blocos com as de
maior cilindrada? É o que certamente pensou a indústria.
Considere ainda o efeito que os marqueteiros chamam de benchmark,
traduzível como referência: se um modelo com determinada concepção
obtém grande sucesso, cria-se a tendência de que a concorrência
copie suas soluções em busca do mesmo êxito. Esse efeito pode ter
levado os avanços técnicos a se espalharem mais rápido pelo mercado,
mas também tende a freá-los quando o carro bem-sucedido adota
recursos mais simples ou tradicionais. É o que se vê hoje com o eixo
traseiro de torção, presente em modelos líderes de vendas até nos
segmentos mais altos da fabricação local.
Quer a padronização represente avanço ou retrocesso, acredita-se que
as soluções consagradas sejam — se não as mais perfeitas — aquelas
que melhor atendem ao compromisso entre o custo e o benefício, tão
procurado tanto por quem fabrica e vende quanto por quem compra e
usa. De qualquer forma, dá saudade das divertidas campanhas
publicitárias do começo de nossa indústria, com quentes discussões
sobre refrigeração a ar e a água, tração à frente e atrás e outras
diferenças que o tempo apagou. |
Em muitos dos
elementos, o que se viu foi um consenso sobre as soluções mais
adequadas. Um motor arrefecido a ar não teria lugar no mundo de
hoje. |