Completou oito anos, agora em março, a produção nacional de carros
com motor flexível em combustível, técnica lançada em 2003 pelo Gol
Total Flex de 1,6 litro e logo adotada por outras marcas — a ponto
de, hoje, mais de 85% dos veículos produzidos terem a capacidade de
consumir gasolina e/ou álcool.
Alguns comemoram esse aparente sucesso. Há até quem acredite que o
carro "flex" foi invenção brasileira, embora já existisse nos
Estados Unidos desde 1991, com a diferença de não poder consumir
álcool puro (E100), que nem existe à venda lá, e sim E85 (15% de
gasolina, 85% de álcool). Outros, como este editor, se perguntam se
a investida da indústria e dos consumidores brasileiros valeu de
alguma coisa.
Antes, cabe lembrar por que foi criado o motor flexível. Ao
contrário do Brasil, com sua vasta rede de distribuição de álcool
combustível implantada no fim da década de 1970, diversos países —
os EUA e os países nórdicos, sobretudo — mostraram interesse no uso
do álcool como solução favorável ao meio ambiente, mas não tinham (e
ainda hoje não têm) uma estrutura adequada de distribuição.
Só uma pequena parcela dos postos desses países dispõe de E85: no
caso dos EUA, menos de três mil entre mais de 100 mil que o país
possui. Assim, surge como solução natural o motor capaz de rodar com
ambos os combustíveis: ao se precisar abastecer e não se encontrar
álcool, pode-se usar gasolina e seguir viagem normalmente. O carro
reconhece o combustível e os parâmetros de injeção e ignição são
adaptados rapidamente ao que está no tanque.
No caso brasileiro, nada disso faria sentido. Há álcool em
praticamente qualquer canto do País e os quatro maiores fabricantes
há muito dominavam a tecnologia para produzir esses motores, que
dominaram o mercado durante os anos 80. O que aconteceu depois? Os
mais jovens podem não saber, mas entre 1989 e 1990 houve grave crise
de abastecimento de álcool, que deixou muita gente sem combustível
suficiente e levou uma parcela de proprietários às oficinas em busca
da conversão dos motores — de álcool para gasolina, o oposto do que
havia acontecido em massa 10 anos antes.
Na década de 1990, mesmo incentivados por benefícios fiscais, como a
menor alíquota de Imposto sobre a Propriedade de Veículos
Automotores (IPVA) em estados como São Paulo, os carros a álcool — e
os produtores do combustível — não reconquistaram a confiança dos
brasileiros. A tecnologia pioneira em âmbito mundial, que havia
trazido vantagens em desempenho e emissões poluentes, ficou
praticamente esquecida por uma justificada crise de confiança. Gato
escaldado...
Então, já nos anos 2000, alguém apareceu com a idéia genial de
copiar o modelo norte-americano do carro flexível, apenas adaptado
na faixa admitida de mistura: enquanto lá varia de 100% gasolina até
85% álcool, aqui precisava chegar ao álcool puro, mas bastava
funcionar com gasolina a 78%, o chamado E22 (algumas marcas fizeram
flexíveis que aceitam gasolina pura, caso da linha Renault e do Fiat
Siena TetraFuel, mas são exceções à regra).
A adesão à proposta foi geral, e não seria diferente. Desde 2002, o
preço do álcool no período de maior safra (em meados do ano) vinha
sendo muito atraente, como R$ 0,60 a R$ 0,80 o litro quando a
gasolina custava algo como R$ 1,50. Mesmo com consumo mais alto — o
rendimento em km/l é cerca de 30% menor, o que equivale a consumir
43% mais para cobrir a mesma distância —, o combustível vegetal
trazia redução expressiva no custo por quilômetro rodado, o que
interessa a qualquer um.
Os fabricantes, interessados em vender mais carros zero-quilômetro a
consumidores afoitos pela expectativa de economizar, correram aos
fornecedores de centrais eletrônicas de motores, que também encheram
seus cofrinhos com a grande demanda por desenvolvimento de
componentes. O governo federal fez sua parte na empreita, ao reduzir
as alíquotas de Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) para
os flexíveis. Viu-se até patrocínio de associação de produtores de
álcool em publicidade de fabricante — Volkswagen —, sinal de que a
campanha pró-flexível tinha muitos interessados. |
|
Ganhos e perdas
E o consumidor, ganhou com a troca do carro a gasolina por um
flexível? Em termos. Não foram poucos os que perceberam que seus
novos motores não só consumiam álcool em excesso, como também bebiam
mais gasolina que os antigos. O mau aproveitamento do álcool era
esperado, pois a maioria dos flexíveis mantinha uma
taxa de compressão de motor a
gasolina ou ficava pouco acima dela. Poucos chegaram a uma taxa
adequada para álcool — há casos entre 12,5:1 e 13:1, ainda bem menos
do que seria possível, com as técnicas de hoje, se apenas o
combustível vegetal fosse usado.
Quanto ao consumo de gasolina, a única explicação possível é que o
esmero na calibração dos motores — a definição dos parâmetros de
injeção e ignição para cada condição de uso, o que envolve muitas
variáveis — foi deixado de lado na urgência em oferecer o que o
mercado demandava. Um engenheiro de fábrica certa vez me contou que
a calibração nunca está realmente concluída: apenas chega o prazo
final para o trabalho, quando a engenharia entrega o melhor que
conseguiu até então. É claro que esse estágio pode ser mais
satisfatório se não houver a necessidade de operar com gasolina,
álcool ou qualquer mistura dos dois.
De fato, mesmo sem analisar consumo, nota-se que nem sempre os
motores ficam como deveriam. Os de taxa de compressão mais baixa
costumam apresentar certa aspereza de funcionamento quando usam
álcool, indício de que o avanço de ignição está excessivo para
tentar melhorar o consumo (é uma forma torta de simular maior taxa).
Os de taxa alta, por sua vez, às vezes funcionam mal com gasolina e
até apresentam início de detonação,
até que o sensor correspondente informe à central para atrasar a
ignição — condição em que o rendimento cai mais do que se fosse
usada uma taxa baixa.
De resto, persiste após três décadas o arcaico tanque suplementar de
gasolina para partida a frio, que até agora apenas os Polos E-Flex e
Blue Motion da VW, de reduzida produção, descartaram. Além do
eventual risco em colisões (que os europeus e norte-americanos não
correm, pois E85 dispensa o tanquinho), há o fator do envelhecimento
da gasolina após três ou quatro meses. Imagine o que acontece com
quem mora em regiões quentes e, certo dia, dá partida durante uma
viagem a um local frio com a gasolina de um ano atrás.
Apesar dessas desvantagens, o carro flexível ganhou a preferência da
maioria, a ponto de tornar difícil a revenda de certos modelos
usados a gasolina — fator menos relevante da faixa média do mercado
para cima, mas crucial nos segmentos de menor preço. Até
importadores sem engenharia local tiveram de entrar nessa, como
acaba de acontecer com a Kia. Tudo para que o consumidor pudesse
usufruir o menor custo por quilômetro.
Só que essa vantagem, de início substancial, foi se reduzindo. A
cada ano, sobem o preço mínimo (durante a safra) e o preço máximo
(na entressafra, sentida no mercado nos fins e começos de ano) do
álcool, mesmo que o da gasolina varie muito pouco. Em alguns
estados, como no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro, a vantagem
de abastecer com álcool durava pouco tempo ou nem mesmo existia.
Mesmo que se tome por base a região Sudeste, por tradição a que tem
álcool mais barato, a proporção entre os preços dos combustíveis vem
ficando cada vez menos favorável ao álcool. Em março de 2004 era de
47%; três anos depois, de 57%; em março de 2010 chegou a 66%,
praticamente no limite para o álcool se manter atrativo — sempre
conforme levantamento da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e
Biocombustíveis, a ANP.
Chegamos a 2011 e, como todos sabem, o preço do álcool alcançou seu
topo até agora. Embora a seção do site da ANP estivesse indisponível
quando a consultei, dados da agência apontam que em São Paulo o
custo do álcool chegou a 78% do valor da gasolina — mesmo sendo este
empurrado para cima, pois um quarto do litro é na verdade álcool. Ou
seja, com essa escalada perdemos todos: os que usam gasolina, os que
precisam usar álcool em carros mais antigos e os que gostariam de
usá-lo em modelos flexíveis, mas não veem viabilidade econômica.
Qual o motivo de tão absurdo aumento? Há quem aponte o rápido
crescimento da frota de automóveis, mas há quem afirme se tratar
apenas do direcionamento da cana de açúcar para produzir açúcar,
cujo preço está em alta no mercado internacional. E o compromisso
com os brasileiros? Ora, os brasileiros...
No momento em que o mundo olha para o álcool pelo aspecto ambiental,
o País desperdiça mais uma vez toda a tecnologia desenvolvida. Mais
de 30 anos depois do primeiro carro a álcool, a frota nacional usa
no momento, em sua maioria, a velha gasolina porque não há
fornecimento do combustível "verde" a preço justo, em uma crise de
confiança que pode pôr tudo a perder. |
A calibração
dos motores nunca está realmente concluída, mas pode ser mais
satisfatória se não houver a necessidade de operar com gasolina,
álcool ou qualquer mistura dos dois |