Questão de origem

Do bocal do tanque à buzina, muitos detalhes que parecem estranhos
em nossos carros têm relação com a procedência do projeto

por Fabrício Samahá

Meu amigo Paulo, dono de um Ford Fusion, veio perguntar dias atrás se eu sabia por que o carro tem o bocal do tanque de combustível no lado esquerdo — e não no direito, como nos outros automóveis que ele teve. "Até eu me acostumar, parava para abastecer com o bocal muito longe da bomba", ele comentou. E qual foi minha resposta? "Porque há um Mazda por baixo do seu carro. Explico melhor no próximo editorial". Então, vamos à explicação — para o leitor e para o Paulo, que deve estar até agora procurando o carro japonês escondido sob seu mexicano.

A posição da tubulação e do bocal do tanque, assim como vários outros elementos do veículo, é escolhida no projeto tendo em vista os países em que ele será mais utilizado. No caso do Fusion, que deriva da plataforma do Mazda 6, o Japão foi o mercado que norteou a decisão. Como lá se dirige pelo lado esquerdo da via, com o volante à direita, o acesso ao tanque fica mais prático se o bocal também estiver à esquerda, pois basta encostar no posto, sem se precisar atravessar a fila de bombas ou esticar sua mangueira até o outro lado — assim como é mais conveniente para nós quando fica à direita.

A mesma posição é usada pela maioria dos carros de origem japonesa, incluindo os nacionais de Honda e Toyota, e sul-coreana, embora na Coreia o tráfego seja pela direita como aqui. Tudo indica que Hyundai e Kia, entre outras, optaram por manter o padrão usado em seus primeiros carros que tinham mecânica cedida por fabricantes nipônicos. O tanque à esquerda está também nos projetos que consideraram o Reino Unido como mercado prioritário, o que inclui o Ford Ka de primeira geração (e o atual brasileiro) e todos os Fiestas, desde 1976. Já o Focus escapou ao "padrão inglês" e o mesmo vale para o novo Ka europeu, por ter a plataforma comum ao Fiat 500.

Curiosamente, a regra do bocal não vale para modelos Nissan como Tiida, Sentra e Livina. A explicação pode estar na importância de mercados ocidentais como o norte-americano para a marca, no caso dos dois primeiros, ou no compartilhamento cada vez maior de componentes e plataformas com a sócia Renault. E, embora a Austrália siga a "mão inglesa", o Omega que vem de lá também tem o bocal à direita, herança dos tempos em que sua arquitetura era baseada na de modelos da Opel alemã. No concorrente direto, o Ford Falcon, o abastecimento é pela esquerda.

O padrão de direção afeta outros elementos, como a saída de escapamento: por intuição, deve estar do lado oposto ao dos pedestres (para não lhes jogar fumaça) e da calçada, para não se danificar nas manobras de estacionamento. Portanto, o lado "certo" é o esquerdo para nós, mas o direito para japoneses, ingleses e australianos. Só que a regra é um tanto flexível e já houve caso de escapamento saindo abaixo do próprio acesso do tanque, na esquerda, o da Chevrolet Caravan — um derramamento de combustível por ali, com o terminal quente, podia ter consequências bastante sérias.

No caso de utilitários esporte, se a porta do compartimento de bagagem se abre para o lado, o vão livre deve estar voltado à calçada para que não seja preciso passar atrás da tampa quando aberta. Está certo para nós no Ford EcoSport, mas não em modelos de origem japonesa como Mitsubishi Pajero TR4 e Suzuki Grand Vitara (antigo e atual), que mantêm as portas projetadas para a circulação nipônica.

Detalhes do carro também podem indicar que o projeto considerou o padrão inglês de direção. Para abrir algumas versões de Ka, Fiesta e Escort, gira-se a chave na fechadura para o sentido horário, o oposto da maioria dos modelos ocidentais. Culpa dos britânicos, pois essa peça foi projetada para a porta do motorista de lá — a direita, não a esquerda. Já houve caso (Mitsubishi Pajero iO) de existir espelho no para-sol do motorista e não no do passageiro, o contrário do usual quando não há em ambos: claro, no Japão se dirige no banco da direita.

No Omega australiano da geração anterior havia mais pistas: botão de ligar o rádio e alavanca do freio de estacionamento vinham no lado direito, mais perto do motorista no país de origem do modelo, e as carcaças dos retrovisores ficavam "erradas" com a regulagem usada aqui, deixando os espelhos um pouco para fora. Como o condutor os ajusta para si, em nosso caso o espelho direito fica mais inclinado para dentro que o esquerdo, mas as carcaças previam o oposto.

Fabrício Samahá, editor

No volante ou na alavanca
Mas nem todas as peculiaridades originam-se do sentido de circulação: há outras que derivam de preferências e legislações locais. É o caso do comando de buzina na ponta da alavanca das luzes de direção, um hábito francês que por aqui equipou Peugeots, Citroëns e Renaults por algum tempo — no caso do Renault Laguna de primeira geração havia tal botão e o repetidor no volante, uma ótima forma de atender a gregos e troianos.

O esquema francês esteve na segunda geração do Ford Corcel, talvez por influência da Renault, que participou do projeto do modelo anterior nos anos 60. Além desses, o Celta usou a mesma posição até 2006, mas apenas por medida de economia de fios e acionadores, já que nada há de francês em suas origens. Também típicos da França são os velocímetros com grafia das dezenas ímpares (30, 50, 70), que representam os limites de velocidade usuais por lá.

No caso dos Fiats, há heranças da produção italiana, como as luzes externas que se apagam ao desligar a ignição, mas com uma forma de religá-las (por muito tempo foi um botão no miolo de partida; hoje há uma tecla em alguns modelos), e a luz de aviso de baixo nível de combustível. No passado, era comum na Itália o volante mais distante do motorista que o usual, pelo biótipo de braços compridos frequente por lá, mas essa característica se perdeu com a globalização.

Típicas de modelos alemães são as luzes de estacionamento separadas, esquerdas e direitas, para sinalizar apenas o lado exposto de um carro parado junto à guia e poupar energia. O mais comum é haver comando para elas, mas no Omega nacional bastava desligar a ignição com a luz de direção acionada para o lado desejado — é por isso que às vezes se via o modelo "caolho", deixado assim sem o motorista perceber.

Se o carro vem dos Estados Unidos ou é produzido (no Canadá ou no México, por exemplo) para atender àquele mercado, há grande chance de carregar outras peculiaridades regionais. Lá se usam luzes de direção traseiras vermelhas, que nem todo fabricante altera para âmbar ao importar o modelo, como deveria. Na frente, os faróis têm facho simétrico, o que traz menor eficiência que o padrão assimétrico usado aqui, e as luzes de posição são em âmbar, em geral conjugadas às de direção. Por outro lado, raramente se veem no país repetidores laterais das luzes de direção, obrigatórios na Europa.

Há mais: nos EUA o retrovisor esquerdo é sempre plano, sem a vantagem do campo visual do convexo, e em muitos casos não há trava no bocal do tanque de combustível — como no Fiesta e no Fusion vendidos aqui. Como as placas de licença norte-americanas são curtas e altas, o espaço para elas pode não servir para as usadas em outras nações (leia editorial a respeito). E por lá é usual a sineta de aviso para chave no contato com porta aberta; por outro lado, carros norte-americanos podem ser travados por dentro nessa condição.

O clima é outro fator que define particularidades. Tetos fixos com grande área envidraçada são apreciados na Europa, pelo sol muitas vezes escasso, mas não bem aceitos nos EUA ou na quente Austrália. Da mesma forma, tetos solares são bem mais comuns no Velho Continente, enquanto a faixa degradê no para-brisa, usual nos EUA e mesmo aqui, fica de fora de muitos modelos europeus.

Por fim, a buzina: nos carros de origem japonesa, de um Honda Fit a um Toyota Camry, usa-se o padrão monotonal agudo, o famoso "bibi", enquanto no Ocidente estão consagradas a buzina mais grave ("fonfom") e a dupla, que combina ambas para um som agradável. É por isso que, quando um Honda ou Toyota buzina em sua rua, você pensa ter chegado o motoboy com a pizza tão esperada... Pelo menos disso meu amigo Paulo escapou!

O comando de buzina na ponta da alavanca das luzes de direção, um hábito francês, por aqui equipou Peugeots, Citroëns e Renaults por algum tempo
 

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Data de publicação: 26/3/11

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