Muitos dizem — até mesmo a publicidade da distribuidora de
combustíveis Ipiranga — que brasileiro é apaixonado por automóvel.
Tenho minhas dúvidas. À parte uma considerável legião de
entusiastas, que inclui boa parte dos que acompanham este site e
todos os que participam da equipe, parece-me mais provável que os
caprichos de muitos brasileiros com seu carro — aquela lavagem que
consome toda a tarde de sábado, a pressa em reparar um pequeno
amassado ou risco na pintura — tenham relação com a conhecida
valorização da estética por nosso povo. No caso, a necessidade de
rodar em um carro bonito, que pareça novo ou bem conservado, mesmo
que o óleo lubrificante já tenha superado largamente o prazo de
troca, que nunca tenha sido feito um alinhamento de rodas ou que se
abasteça num posto suspeito para poupar uns trocados.
Essa é uma questão que rende longas discussões e sobre a qual,
provavelmente, jamais se chegará a um consenso. Mas é ponto pacífico
que o brasileiro — apaixonado ou não por carro — gosta de um
automóvel bonito. As pesquisas de mercado sempre colocam o desenho
como um dos pontos mais importantes na decisão de compra. Carro feio
ou sem atrativos visuais, por aqui, está geralmente condenado a uma
ponta nas estatísticas de vendas, entre aquela parcela do público
que não liga para isso ou usa o veículo como ferramenta de trabalho.
Diante disso, uma pergunta tem sido feita por muita gente (este
editor incluído) nos últimos tempos: o que passa pela mente dos
projetistas que definem as linhas dos carros para o mercado
brasileiro? Sejam modelos com desenho inteiramente novo, sejam
reestilizações dos produtos já conhecidos, vários têm apostado em
soluções de estilo que parecem agradar a poucos, um risco alto
demais para correr em um mercado tão focado em aparências como o
nacional. (Antes que o leitor envie sua mensagem de protesto, vale
lembrar que um Editorial é um texto pessoal e que cada um tem
direito a gostar ou desgostar do que quiser. Portanto, que ninguém
se ofenda pelos comentários que farei a seguir.)
Só nas últimas semanas foram revelados dois lançamentos que se
enquadram nessa definição: o
Fiesta com frente
remodelada, que acaba de ser apresentado à imprensa, e a segunda
geração do Uno,
com lançamento dia 4 de maio.
No caso do Fiesta, a sensação que ficou é que foi dada ampla
liberdade para criar algo moderno, com alguma inspiração nos últimos
modelos da Ford europeia, mas a contenção de despesas obrigou a se
combinar a nova frente ao mesmo restante lançado há oito anos. Não
há como negar — goste-se dela ou não — que a dianteira apresentada
agora está em conflito com as laterais cheias de linhas retas e
ângulos e, no caso do sedã, também com a traseira. Curiosamente,
quando a atual geração do Fiesta passou pela primeira reestilização
em 2007, a traseira inalterada do sedã "casou" bem com a nova frente
baseada em linhas retas, enquanto o hatch parecia um pouco
arredondado demais por trás, sem chegar à dissonância. Agora, a
falta de harmonia do conjunto chega a incomodar.
No caso do Uno, muitos ainda se lembram da rejeição inicial ao
modelo de 1984, desenhado pelo mestre italiano Giorgetto Giugiaro e
apelidado por aqui de "botinha ortopédica". Levou alguns anos para
que o desenho moderno — e muito funcional — do pequeno Fiat fosse
assimilado pelos brasileiros, mas a "botinha" venceu e passou 20
anos sem grandes intervenções de estilo até receber uma frente
grosseira e com jeito de Doblò, em 2004. Anos depois, começaram a
aparecer projeções de um novo Uno, com projeto nacional, e o
resultado agora surge em fotos oficiais.
Se gostei? Não muito. As linhas retas com cantos arredondados dão a
impressão de que um desenho inicial foi feito com objetivo de
transmitir robustez, mas teve de ser revisto porque alguém opinou
que estava "bruto" demais. Então apararam-se as arestas e o carro
ficou com jeito de brinquedo, acentuado por detalhes como a grade de
um lado só (três vãos do lado esquerdo, nenhum do direito), os
elementos retangulares nas portas e as molduras de para-lamas algo
ovaladas. Visto por trás, com os vidros laterais e traseiro quase
verticais, o Uno me lembra alguns projetos despretensiosos de carros
populares para o mundo emergente — o que ele de fato é, mas com o
detalhe de ser destinado ao público "apaixonado por carros" do
Brasil. Acredito que a Fiat tenha conseguido um bom aproveitamento
de espaço, no que sobressai desde o pioneiro 147, mas não dava mesmo
para chegar a algo mais agradável aos olhos? |
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Estilo agressivo
— mesmo
Penso em
agressão aos olhos e me vem à lembrança o Chevrolet Agile. Chega a
surpreender que a General Motors brasileira, em outros tempos tão
talentosa no desenho de carros — responsável pela conversão em sedã
e picape do Corsa dos anos 90, pela frente inicial de S10 e Blazer e
pela transformação do Corsa atual em Montana, entre outras felizes
criações —, tenha chegado a esse resultado final. O Agile parece
desenhado por diferentes equipes, sem comunicação entre elas, cujos
trabalhos foram reunidos à força no fim do processo sem oportunidade
para cada uma tentar se adequar às demais. Os faróis são imensos, a
grade dianteira parece tomada emprestada de um picape Silverado e a
linha do capô é alta demais para o tipo de carro, como se viesse de
um utilitário. As laterais apelam para soluções estranhas como as
aletas nas laterais do para-brisa, que simulam um vidro mais
inclinado quando o carro é visto de lado — mas só totalmente de lado
—, e o aplique de plástico preto nas colunas traseiras, para dar a
sensação de uma área envidraçada com perfil mais esportivo, próximo
ao de um cupê, sem que isso disfarce as linhas retas da parte final
do teto. Ainda, os vidros laterais quase verticais acentuam o ar
estranho quando visto de frente ou de traseira, problema comum a
Logan e Sandero.
E, por falar na dupla da Renault, abro mão de comentar sobre o sedã.
Ele tem motivo para seu desenho quadradinho, pois foi projetado como
carro barato para países descompromissados com aparência, como sua
Romênia natal (é um projeto da Dacia, marca do grupo Renault-Nissan
sediada naquele país) e outras nações emergentes ou sem planos de
emergir. O problema foi a Renault daqui decidir que um hatch
atraente deveria ser obtido do Logan. O Sandero teve de manter sua
estrutura central retilínea, com vidros laterais quase verticais, e
recebeu uma frente até agradável e uma traseira muito controversa,
com a forma irregular das lanternas. Os vincos em curva aplicados às
portas, possível inspiração em um dos trabalhos menos harmoniosos de
Chris Bangle para a BMW — o Série 1 —, também parecem apelativos em
uma parte do carro onde não havia muito a fazer. Como um todo, o
Sandero é estranho. E pensar que, se a Renault tivesse seguido a
filosofia que escolheu para o Brasil nos anos 90 e da qual se
desviou depois, poderíamos ter em seu lugar o muito mais bonito Clio
europeu de terceira geração.
Em um cenário como esse, vale lembrar outros projetos um tanto
polêmicos, como as reestilizações aplicadas a S10 e Blazer em 2000
(retocada à exaustão nos anos seguintes), Palio em 2007 (depois
amenizada pelo uso de faróis do Siena, de melhor aspecto), Peugeot
206 (renomeado 207) em 2008 e Ranger em 2009, além das amplas
reformas que transformaram o antigo Ka no modelo atual e o Clio sedã
no Symbol. O novo Classic com linhas "importadas" da China — eram do
Chevrolet Sail que já saiu de produção por lá — até que não ficou
mal, mas aquela traseira tem todo o jeito dos anos 90, lembrando o
Corolla da geração retrasada.
E sou só eu que me lembro da Rural Willys quando vejo a traseira do
Kia Soul, o tal "carro design" da publicidade? |
O Agile parece
desenhado por diferentes equipes, sem comunicação entre elas, cujos
trabalhos foram reunidos à força no fim do processo sem oportunidade
para cada uma tentar se adequar às demais. |