O poder da canetada

Deputados contrariam o bom-senso ao propor soluções
irreais para situações do trânsito ou do mercado

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editorNão seria ótimo poder resolver todos os problemas por decreto? Baixa-se um, e acaba a fome no país. Cria-se outra lei, e os índices de criminalidade caem a zero. Com outra canetada, Bin Laden de repente aparece por trás das grades. Tudo de forma instantânea e sem efeitos nocivos para ninguém — a não ser para o líder da Al Qaeda, claro.

Às vezes, parece que alguns de nossos congressistas se sentem com esse poder sobrenatural de criar soluções por meio de leis. Em meados do ano passado, o deputado federal Inocêncio Oliveira (PFL-PE) reapresentou projeto para que os fabricantes fossem obrigados a manter os automóveis em produção por 10 anos, a título de evitar "a depreciação e a falta de peças de reposição".

O congressista pretendia revogar a lei mais antiga do mundo — a da oferta e da procura —, impondo uma sobrevida a modelos que já tivessem esgotado seu ciclo de permanência no mercado.

Agora surge outra notícia surpreendente. Segundo o projeto de lei 2.709/03 do deputado federal Milton Monti (PL-SP), carros com mais de 30 anos de fabricação teriam sua circulação proibida, sendo encaminhados a desmanches. A medida excluiria os veículos de coleção e aqueles em "bom estado de funcionamento", mas eles só poderiam rodar nos fins-de-semana, mediante licença concedida pelos órgãos de trânsito.

Mais uma solução criada por decreto. Se há nas ruas carros velhos em péssimo estado, poluentes e mais sujeitos a quebras e acidentes, vamos proibir a circulação de todos nivelando-os pela idade. Para que fiscalização nas ruas? E a Inspeção Veicular de segurança e emissões, para que temos esperado sua regulamentação há tantos anos? Se é tudo tão simples — basta uma canetada —, por que ter tanto trabalho?

"Ah", pode argumentar o leitor, "mas os carros em bom estado não serão desmanchados". E quem, sob que critérios, vai decidir o que é bom estado e o que não é? Se até hoje não temos uma definição de como fazer a Inspeção Veicular, como condenar um veículo ao desmantelamento sem critérios objetivos? Os órgãos de trânsito terão o poder de separar um pedaço da história de uma arma que poderia matar de tétano, tamanha a concentração de ferrugem?

O que esses senhores precisam perceber é que não se resolvem questões complexas por decreto. Seguir os moldes dos países desenvolvidos seria um bom começo: inspeções de segurança com intervalos menores para os mais antigos, licenças e impostos de circulação que não incentivem a manter o carro velho (ao contrário de nosso IPVA, que é proporcional ao valor venal do automóvel e isenta os de mais de 20 anos), fiscalização rigorosa nas ruas para identificar veículos em situação irregular.

Se esperamos um dia chegar ao Primeiro Mundo, é com soluções reais — e não canetadas irresponsáveis — que vamos caminhar à frente.

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Data de publicação: 20/3/04

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