O
dicionário Houaiss define marketing, em uma de suas acepções, como
"conjunto de ações, estrategicamente formuladas, que visam
influenciar o público quanto a determinada ideia, instituição,
marca, pessoa, produto, serviço, etc.". Essa palavrinha inglesa tão
consagrada em nosso dia a dia — como substituí-la por
"mercadologia", talvez sua tradução mais adequada? — tem relevância
cada vez maior em mercados como o de automóveis, em que a percepção
do cliente se torna decisiva na compra.
Assim, nada mais natural que os fabricantes dedicarem grande esforço
para um bom trabalho de marketing, o que inclui eficiente divulgação
do produto à imprensa e uma bem planejada campanha de publicidade. O
problema — para quem compra, não para quem vende — é quando esse
esforço recai em manobras questionáveis, quando a verdade dá lugar a
uma meia verdade, quando o objetivo de vender leva a tentar
convencer de que dois mais dois não são quatro, mas cinco ou mesmo
seis. Surgem então as pegadinhas do marketing. Reuni algumas aqui.
> Potência. Qualquer um tem a noção de que um carro mais
potente — com mais "cavalos", ou cv — oferece desempenho superior e
lida melhor com situações como subidas, ultrapassagens e carga
total. Mas não é sempre assim: a potência máxima conta apenas parte
da história. Ela mostra só o que o motor pode fazer se levado àquele
regime de rotação, que está perto do máximo em que pode funcionar.
Na prática, é preciso saber quanto dessa potência está disponível
nas faixas de rotação em que o carro será usado a maior parte do
tempo — entre 2.000 e 3.000 rpm, por exemplo, e não a 5.500 ou
6.000. Se não houver um gráfico de curva de potência como os que
publicamos nas avaliações completas, uma forma de comparar esse
quesito é pelo torque máximo (quanto maior, melhor) e pelo regime em
que ele aparece (quanto mais baixo, melhor).
É assim que se percebe, por exemplo, que o motor de 1,6 litro de um
Gol de 15 anos atrás, com 76 cv a 5.500 rpm e 12,3 m.kgf a 3.500
rpm, oferecia respostas bem mais ágeis que o de 1,0 litro de um
Classic atual, com 77 cv a 6.400 rpm e 9,5 m.kgf a 5.200 rpm, ambos
com gasolina — e,
no entanto, a potência máxima é quase igual. Como para muita gente esse é
um campo desconhecido, o argumento dos cv fala mais alto. Não é por
outro motivo que muitos fabricantes dedicam toda a atenção à
potência, em uma verdadeira guerra contra a concorrência para vencer
por 1 ou 2 cv. Baixas e médias rotações? Ora...
> Tamanho. Distinguir os modelos em faixas de tamanho nunca
foi fácil, mas está ficando mais complicado. Tem sido frequente que
um carro menor, com a distância entre eixos ampliada, tente competir
com os de segmento superior. Foi assim com o Vectra atual, que
ganhou 9 cm em relação ao Astra; com o C4 Pallas, aumentado em 10 cm
diante do C4 hatch; com o Linea, com 9 cm a mais que o Punto nessa
medida; e com o City, 4 cm maior que o Fit em entre-eixos. Com isso,
os médio-pequenos Astra e C4 ganharam porte — ao menos no sentido
longitudinal — para passar por médio-grandes, enquanto o Punto e o
Fit, que são carros pequenos, assumiram nas versões sedã o tamanho
de um médio-pequeno. Essa manobra de "esticar" o automóvel
("carro-salsicha", já disse um amigo jornalista) permite ao
fabricante oferecê-lo como se pertencesse a uma classe superior e,
portanto, tentar emplacar um preço maior. O problema é que muitas
vezes a largura permanece a do segmento inferior, e isso o
consumidor percebe dentro do carro.
> Garantia. Um carro com garantia mais longa é um produto de
melhor qualidade, certo? Em teoria, sim. Na prática, pode não ser. A
conta que o fabricante faz para definir o prazo de cobertura
considera, de um lado, a probabilidade de ocorrência de defeitos que
levem a substituições por conta da fábrica, e de outro, o lucro
obtido ao convencer o cliente a manter o plano de manutenção do
veículo na rede autorizada por aquele período — condição, como se
sabe, para que se possa pleitear qualquer reparo em garantia. Se
essa conta resultar em um prazo de cobertura muito inferior ao da
concorrência, há uma solução simples: reduz-se o intervalo entre as
revisões e aumenta-se o leque de serviços obrigatórios.
É de onde surgem aberrações como a troca de óleo da transmissão
(seja a caixa manual ou automática) do Hyundai Tucson a cada 30 mil
quilômetros ou 36 meses, em condições normais, ou a cada 15 mil em
"condições severas de uso", que não precisam ser tão severas assim —
segundo o manual do modelo, basta o uso em curtas distâncias e com
marcha-lenta prolongada, tão comum no dia a dia. Ou seja, uma troca
de óleo de câmbio no utilitário sul-coreano chega a ser tão
frequente quanto a do óleo de motor de alguns carros... O absurdo é
ainda maior quando se observa que o padrão da indústria para o óleo
de câmbio manual é o tipo que nunca precisa ser substituído.
Há ainda o caso híbrido, em que o fabricante amplia a garantia
apenas para motor e câmbio (três anos na linha Volkswagen e no
Peugeot Hoggar), mantendo a cobertura menor (um ano) para o restante
do veículo. Para assegurar a garantia desses elementos caros, mas
com baixa probabilidade de prejuízo nesse período, o comprador se
mantém nas concessionárias por muito mais tempo do que pretendia,
dado o hábito brasileiro de fazer manutenção — quando faz — em
oficinas independentes. Genial. |
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>
A prova dos nove. Não se sabe se a coisa começou pelas
lojinhas de badulaques de R$ 1,99, mas o número nove se espalhou
pelos preços dos carros. É 59.990 para cá, 79.990 para lá, e o
consumidor incauto tende a ler "50 e pouco" ou quando muito "79" em
vez de 60 e 80, que são os verdadeiros valores camuflados pelo
excesso de noves. A coisa chega ao ponto em que postos de
combustível criaram o milésimo de real para vender, por exemplo, o
litro de gasolina a R$ 2,499... Em protesto, no Best Cars
esse tipo de manobra não chega até você: arredondamos os valores
para cima, como de R$ 79.990 para R$ 80 mil.
> Bolsas infláveis. "Meu carro tem mais airbags que o seu":
talvez não, pois depende da forma de contar. Marcas como Hyundai,
Mitsubishi e (às vezes) Toyota consideram que duas cortinas
infláveis, que cobrem a área envidraçada das quatro portas laterais
e portanto protegem até quatro ocupantes, valem por quatro bolsas.
Assim, se há cortinas e mais as bolsas frontais (duas) e laterais
dianteiras (duas), a conta de seis vira oito na manobra de
marketing. Muito perspicaz, mas fica a pergunta: se é assim que se
contam as bolsas e como as frontais, laterais e cortinas protegem
apenas quatro ocupantes, não deveriam valer só por quatro?
> Caçamba. Um belo dia alguém percebeu que, elevando a borda
da caçamba de um picape, chegaria a um número mais polpudo em
capacidade volumétrica do compartimento. Isso deu origem a casos
como o do Chevrolet Montana, com uma caçamba tão alta que chega a
prejudicar a visibilidade. O problema é que essa vantagem só se
aplica a quem transportar líquidos ou farelos: para qualquer outra
carga, o que importa são as dimensões da caçamba como comprimento e
largura. Um volume de 1.100 litros não faz um picape mais útil que
um com 900 litros se a caçamba deste último for 10 cm mais comprida
e, assim, só ele puder levar uma moto com a tampa fechada.
> Juro zero. Esta é antiga, mas ainda leva muita gente na
conversa. Em tempos de mercado desaquecido, ou quando o fabricante
vai com muita sede ao pote na definição do preço sugerido (como
aconteceu com o Honda City), anuncia-se o financiamento com taxa
zero de juros. Sim, a empresa oferece a venda a prestação pelo mesmo
valor da compra à vista. Almoço grátis? Claro que não: se isso
acontece, é porque à vista se pode conseguir um valor bem inferior
ao sugerido. No fim das contas, quem comprar financiado vai pagar
mais, como é da natureza de qualquer negócio.
> Depenação. Talvez a manobra mais difícil de perceber: ano
após ano ou até dentro do mesmo ano-modelo, o fabricante encontra
como tirar mais "azeitonas da empada" — alusão à conhecida parábola
da companhia aérea que, em busca de uma milionária redução de
custos, eliminou uma das duas azeitonas que compunham as empadinhas
servidas aos passageiros. E lá se vão itens de conforto,
conveniência, acabamento ou mesmo segurança que para a fábrica
custavam poucos reais, ou até centavos, mas tinham sua utilidade ou
ajudavam a compor um bom produto. Afinal, R$ 1 economizado por
unidade se torna R$ 100 mil em um modelo que venda 100 mil unidades
no ano, por mais desprezíveis que R$ 100 mil sejam no faturamento
anual da empresa.
Enquanto o departamento financeiro comemora, o consumidor paga o
mesmo — raramente há redução de preço — por um carro pior e, como
agravante, em geral só percebe depois da compra. O que se pode fazer
nesse caso? Antes de comprar, acompanhar publicações como o Best
Cars, onde a "depenação" não passa despercebida nas avaliações,
e analisar a relação de equipamentos de série do automóvel para
encontrar eventuais perdas, sobretudo quando já se possui um do
mesmo modelo. Depois da compra, vale protestar ao fabricante (fácil
hoje com a internet) para que ele não pense que saiu ganhando com a
piora do produto.
Claro que nesse caso não cabe qualquer tipo de reparação ao cliente,
salvo se faltar no veículo um equipamento que conste da relação
atualizada de itens de série. Mas a opinião de quem compra pode
influir — assim como em todos os casos que citei acima — para o
fabricante pensar duas vezes na próxima tentativa de fazer a manobra
questionável. |
O número nove
se espalhou pelos preços. A coisa chega ao ponto em que postos de
combustível criaram o milésimo de real para vender, por exemplo, o
litro de gasolina a R$ 2,499. |