Acredite se puder

O antigo programa de Jack Palance, que mostrava fatos difíceis
de crer, teria muitos assuntos se fosse feito hoje no Brasil

por Fabrício Samahá

"Essa é digna de ser mostrada por Jack Palance", costuma dizer meu amigo Bob Sharp — conhecido de muitos leitores por sua participação no Best Cars, em coluna e outros conteúdos, entre 2000 e 2008 — quando se depara com algum fato real, mas que beira o inacreditável. Bob se refere ao nome artístico de Volodymyr Palahniuk (1919-2006), ator de cinema e apresentador de TV norte-americano de ascendência ucraniana que, de 1982 a 1986, manteve na telinha a série Believe It or Not!. No programa eram mostrados fatos tão inusitados que poderiam levar o espectador a duvidar — acredite ou não, por isso o nome.

Infelizmente, fatos "dignos de Jack" têm acontecido em grande quantidade neste nosso Brasil. Foi o que constatei, por exemplo, nesta semana ao viajar entre minha cidade de Pindamonhangaba e a capital paulista pelo corredor SP-70, as rodovias Carvalho Pinto e Ayrton Senna. O complexo de 135 quilômetros passou recentemente ao controle da concessionária Ecopistas, que anunciou para o último dia 18 o início de cobrança bidirecional de pedágio também para carros de passeio (já era assim com ônibus e caminhões). As rodovias têm quatro praças de pagamento, mas apenas duas eram usadas para cobrança a automóveis e motos em cada sentido. De São Paulo para o interior, pagava-se no km 32 e no 92; no sentido inverso, no 114 e no 57. Nas demais praças a passagem era livre.

Com a mudança, passou a ser necessário fazer quatro paradas em cada sentido nos quilômetros 32, 57, 92 e 114. Como são 82 km do primeiro ao último pedágio, a média é de apenas 27 km entre as praças. Trafegando à velocidade permitida de 120 km/h, isso significa que em média a cada 13 minutos você precisa interromper a viagem, pegar dinheiro, enfrentar eventual fila, pagar, receber uma pilha de moedas e um comprovante — desnecessário consumo de papel — e voltar a emitir gás carbônico na atmosfera com a reaceleração do carro. Treze minutos! É para esgotar a paciência de qualquer um.

Não bastasse o número e a frequência de paradas, há mais três fatores. Primeiro, existem três tarifas diferentes (R$ 1,70, R$ 2,20 e R$ 2,30), todas com centavos — ou se perde tempo juntando moedas para pagar, ou se recebe um monte delas como troco — e baixas o bastante para justificar que fossem agrupadas duas a duas, como antes. Segundo, as rodovias fizeram por muito tempo a cobrança em apenas um sentido, de modo que o atual projeto das praças não comporta o pagamento bidirecional. Ao fazer a alteração sem adequar as praças, a Ecopistas — em demonstração de incompetência e desrespeito ao usuário — criou uma sequência de congestionamentos, alguns bastante desorganizados, pois nem mesmo foi demarcada no asfalto com a extensão necessária a divisão entre as filas de cada cabine. E terceiro, seria preciso dobrar o número de funcionários nos pedágios para dar conta da duplicação de cobrança, o que claramente não foi feito, a julgar pelos transtornos causados. Como será nos feriados prolongados?

É mesmo de espantar — e seria ótimo tema ao Jack se ainda estivesse entre nós — como alguém pode achar que isso seja boa ideia e, pior, como o Poder Público aprova tal absurdo no contrato de concessão. De acordo com a desastrada concessionária, "essa prática permite ao usuário que efetue o pagamento apenas pelo trecho percorrido", como se ela estivesse nos fazendo um favor. Explicando: se você viajar por um trecho das rodovias apenas num sentido e voltar por outro caminho, a mudança evita que se pague a tarifa duplicada — e, como é do interesse da concessionária, também o impede de usar o trecho sem pagar. Por essa "vantagem" é que a empresa impõe aos usuários um transtorno a cada 13 minutos. Jack, por onde andará você?

A solução, eu sei, é simples: o sistema Via Fácil/Sem Parar e sua cobrança de pedágio eletrônica, sem parar na cabine. De fato, a Ecopistas gostaria que todos aderíssemos a esse programa para reduzir seus custos de pessoal — não é à toa que ela permite vendedores do sistema junto às cabines, para abordar os motoristas parada após parada, dia após dia. Contudo, sou partidário de que as coisas devem funcionar para todos e não só para quem opta por um serviço opcional. Existirem carros blindados não desobriga o Estado a buscar nossa segurança nas ruas, assim como haver escolas particulares, convênios de saúde e boas rodovias com pedágio não o isenta — ou não deveria isentar — de oferecer escolas, hospitais públicos e estradas dignos ao cidadão que paga impostos. Da mesma forma, haver um sistema eletrônico a custo adicional não desobriga a concessionária de efetuar a cobrança tradicional de maneira a não prejudicar o usuário. É aqui que a Ecopistas age com profundo desrespeito.

Quem deve estar agradecendo é a CCR NovaDutra — que administra a BR-116 Rodovia Presidente Dutra, com apenas duas praças de pedágio por sentido no trecho entre São José dos Campos e São Paulo —, pois cada motorista insatisfeito com a Ecopistas é um potencial novo usuário da Dutra.

Fabrício Samahá, editor

Falta álcool, falta gasolina
Mas não é só nos pedágios que os absurdos "dignos de Jack Palance" vêm acontecendo. Na cidade de São Paulo, a CET (Companhia de Engenharia de Tráfego) decidiu num belo dia reduzir a velocidade máxima das avenidas 23 de Maio e Rubem Berta de 80 para 70 km/h, o que "diminui o risco de ocorrência de acidentes em quatro vezes", segundo o órgão. Nosso amigo apresentador, se pudesse, mostraria essa alteração diante de uma pergunta: e levaram 20 anos ou mais para perceber isso? Não, caro Jack, a resposta está mais para uma "re$po$ta": nada como uma redução no limite para que as famosas maquininhas de fazer dinheiro possam trabalhar a todo vapor, gerando caixa para a prefeitura às custas de motoristas incautos que trafegarem na velocidade natural da via, não naquela artificialmente baixa imposta pela CET.

E, acredite ou não, há mais. No mesmo país onde o carro flexível em combustível é tratado como uma revolução tecnológica — embora na terra de Palance já existisse em 1991 —, não há mais álcool nem gasolina suficientes para abastecer. O álcool ficou escasso e disparou de preço porque os usineiros, comprometidos que são com seu país, destinaram a cana-de-açúcar para a produção de açúcar, cujo valor está em alta no mercado internacional — eu disse lá fora, e é por isso que aqui o açúcar está custando o dobro de algum tempo atrás. E os oito milhões de carros flexíveis em circulação? Ora, são flexíveis mesmo... Que usem gasolina, não?

Pois bem, caro Jack, passamos quase todos a usar gasolina, apesar de seu preço tão salgado (aqui não é a Argentina, onde a comum está a R$ 1,80), logo no período de férias escolares em que tanto gostamos de pegar uma estrada. Melhor nem pensarmos em emissão de gás carbônico, pois aqui a "consciência ambiental" só faz usar álcool se e quando for benéfico ao bolso. Quem deve estar dando pulos de alegria são profissionais como vendedores e taxistas, que já haviam desistido do gás natural desde que seu preço ficou proibitivo (aliás, Jack, você sabia que o Brasil talvez seja o único país no globo onde carros não podem rodar com diesel?). O governo até colaborou com a queda no consumo de álcool ao reduzir de 25% para 20% o teor de etanol anidro presente na gasolina.

Sabe no que deu? Acredite ou não, foi preciso importar gasolina pela primeira vez desde os anos 70, quando o programa de incentivo ao carro a álcool — mais tarde fracassado — foi instituído. Segundo a Petrobrás, o Brasil até poderia produzir mais com o petróleo extraído localmente, mas isso acarretaria menor produção de óleo diesel, cuja importação é mais cara. Assim, o dito "país autossuficiente" está hoje na situação de comprar gasolina da Venezuela porque não tem nem um combustível nem outro para seus automóveis.

Acabou? Não, tem mais. Tem os 20 anos de espera pela inspeção veicular, que só em 2009 saiu do papel e por enquanto apenas na capital paulista. Tem o início da mesma inspeção no ano passado pelos carros mais recentes — fabricados desde 2003 — e não pelos anteriores, que certamente apresentam mais problemas de manutenção e deveriam ter prioridade. Tem a exigência de extintor de incêndio, algo que não existe no mundo desenvolvido, uma mina de ouro para os fabricantes do produto — e um pesadelo para os de automóveis, que precisam adaptá-lo a projetos e carros vindos de fora. Tem a cobrança de taxa integral de placas em São Paulo (R$ 61) quando se trocam apenas as tarjetas por mudança de município.

Tem o abusivo custo (R$ 11 em São Paulo) para envio do documento de licenciamento pelos Correios para a casa do proprietário, fonte de polpudos lucros aos Detrans, já que é um envelope levíssimo e emitido em grande quantidade (nos Estados Unidos, eu soube, o envio custa US$ 0,59). Tem a obrigatoriedade de comprovação do número do motor quando o carro é transferido entre estados. Como isso nunca foi previsto, os fabricantes nem sempre estampam tal número em local de fácil visualização. Resultado: criou-se um grande mercado para empresas de vistoria credenciadas, que em minutos fotografam o número e impõem trabalho e custo adicionais a quem se vê nessa condição.

E tem os preços e impostos de carros, motos, seguros, combustíveis — enfim, de praticamente tudo o que um motorista paga — bem mais altos que na maioria dos países, desenvolvidos ou não, apesar de nossos salários médios ficarem bem abaixo dos pagos em alguns desses países.

Jack Palance, descanse em paz. Porque, se estivesse vivo e resolvesse abordar o Brasil em seu programa, nem você acreditaria na quantidade de fatos incríveis que acontecem nessa terra abençoada por Deus e bonita por natureza.

A CET reduziu a velocidade máxima das avenidas de 80 para 70 km/h, o que ela diz "diminuir o risco de acidentes em quatro vezes". Nada melhor para que as maquininhas de fazer dinheiro possam trabalhar a todo vapor.

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Data de publicação: 27/2/10

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