Big Brother no trânsito

A "placa eletrônica" põe em debate as intenções das autoridades
e sua eficácia no combate aos problemas do tráfego

por Fabrício Samahá

Fabrício Samahá, editorO Conselho Nacional de Trânsito (Contran) aprovou a criação do Sistema Nacional de Identificação Automática de Veículos (SINIAV), que prevê a aplicação, dentro de cinco anos, de uma plaqueta eletrônica ao pára-brisa de todos os veículos. O sistema permitirá a antenas específicas, ligadas a centrais de processamento, identificá-los no trânsito sem a intervenção humana ou a necessidade de pará-los (saiba mais).

A idéia tem seu lado positivo. Quando a implantação estiver concluída, será possível manter em operação o equivalente a numerosas blitze policiais, só que eletrônicas, permanentes e sem prejuízo ao tráfego. Veículos roubados e com licenciamento vencido serão flagrados com facilidade. A adulteração de placas com fita adesiva, por exemplo (como temos visto no noticiário), perderá o sentido, pois a verdadeira identidade do carro estará à vista. Também será mais difícil a "clonagem" de veículos, o uso criminoso de uma placa igual à de um carro idêntico. E a fiscalização de infrações será fortalecida.

O SINIAV, por outro lado, já começa a provocar polêmica. Advogados estranham a tendência de ampliar a vigilância e temem uma invasão da privacidade dos motoristas. Entre eles estão autoridades no assunto como Ciro Vidal, ex-diretor do Detran em São Paulo, hoje presidente da Comissão de Assuntos e Estudos sobre Direito de Trânsito da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-SP). "Isso não está me cheirando bem, vamos ver quantas empresas podem fazer isso", disse Vidal ao jornal O Estado de S. Paulo.

Ao que parece, o assunto ainda renderá muita discussão. Pessoalmente não vejo risco à privacidade, já que o Estado poderá apenas monitorar as vias públicas pelas quais o veículo passar. Se a atual placa de licença já está aparente todo o tempo, que diferença faz haver uma "placa eletrônica"? É claro que o monitoramento constante de um veículo hoje é inviável, mas não impossível nem ilícito. Portanto, sua viabilização por um sistema eletrônico não me parece irregular.

De qualquer forma, é fácil imaginar um cenário de Big Brother para o futuro breve. Para quem não sabe, meio século antes de denominar o fútil programa da TV, o "grande irmão" era um ente criado por George Orwell em seu livro 1984, publicado em 1949. Na sociedade descrita na obra, um ditador com feições que lembram as de Joseph Stalin (o todo-poderoso primeiro-ministro da URSS) monitorava tudo e todos por meio de câmeras, aparecendo em telas como as de TV com a mensagem Big Brother is watching you (o Grande Irmão está de olho em você).

Transpondo isso para o trânsito, pode-se prever um implacável monitoramento de infrações. Deve se tornar difícil escapar ao absurdo e ilegal rodízio de veículos da capital paulista, ou de qualquer restrição do gênero, por meio de rotas menos fiscalizadas por agentes de trânsito. Não se falou, aliás, se a localização das antenas leitoras terá de ser informada na via, como ocorre hoje com a presença de detectores de velocidade.

Em rodovias, será possível às autoridades controlar a velocidade de cada carro pela média, medindo o tempo decorrido entre dois pontos. Exagero? Não quando o diretor do Departamento Nacional de Trânsito (Denatran), Alfredo Peres da Silva, admite que foi calculado pelo sistema o tempo que o motorista levou para ir de um ponto a outro em um teste piloto feito em São Paulo. Com isso, o motorista que passar do limite por algum tempo, por qualquer razão — como ao acelerar para escapar de um caminhão que vem rápido em uma descida —, terá de compensar o excesso rodando devagar, abaixo da corrente de tráfego. Em vez de ganho em segurança, tem-se uma perda cada vez que isso acontece.

Pode-se argumentar que as leis existem para ser cumpridas, o que perde força diante dos limites de velocidade hipócritas espalhados pelo País. Os paulistas que descem ao litoral pela Rodovia dos Imigrantes, ao máximo de 80 km/h, ou voltam de Campos de Jordão pela Floriano Rodrigues Pinheiro, com limite de 60 km/h, sabem do que estou falando. É a indústria da multa exacerbada.

Resta esclarecer dois pontos. Um, como ficarão os veículos fora da lei, cujos proprietários já não pagam licenciamento ou IPVA e, presume-se, não se preocupam com a manutenção do carro e o cumprimento das normas de trânsito. Quando um deles passar pelas antenas e for identificada a ausência da placa eletrônica, o que se vai fazer? Emitir mais e mais multas que nunca serão pagas?

Outro, se o sistema será confiável contra violações. Como argumentou o leitor
Lisiong Lee, de São Paulo, "hoje mudam hodômetros eletrônicos, inutilizam rastreadores por rádio e satélite com bloqueio do motor, clonam celulares apesar de uma lista negativa nas empresas telefônicas. Quantas semanas vai demorar até que o camelô da esquina ofereça uma etiqueta eletrônica falsificada?"

O Big Brother do trânsito tem seus prós, mas também numerosos contras. E ambos precisam ser bem estudados.

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Data de publicação: 24/11/06

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